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«O ano começou em Julho. O lugar era
estranho. O suor corria por dentro, por trás da pele, eu suava e meu corpo
continuava seco. Era como se o ar fosse duro, sólido, um ar de pedra. Eu bebia
um copo d’água depois do outro até sentir a barriga estufada e pesada mas era
sempre isso, o suor seco e o ar duro e o sol com um ferrão em cada raio. Não
havia nenhuma brisa, nenhum hálito que viesse me aliviar um pouco entrando
pelas frestas da blusa, levantando a barra da saia ou sacudindo meu cabelo com
promessas de salvação. Em compensação, eu nunca via baratas. Barata americana: Periplaneta
americana. Li certa vez que elas têm a capacidade de se autorregenerar,
dependendo da gravidade da injúria. Eu as conhecia intimamente, de convívio e
de fama (as únicas capazes de sobreviver a uma hecatombe nuclear etc.), de
encontros-surpresa na cozinha e no hall do elevador de serviço. Em Copacabana,
elas estavam em toda parte. Mas ali eu não via baratas. Era até possível que
elas existissem, e conseguissem tolerar a constante falta de humidade e a
seriedade do Inverno, quando fosse Inverno. Mas eram bem mais discretas. Eu
tinha treze anos. Ter treze anos é como estar no meio de lugar nenhum. O que se
acentuava devido ao facto de eu estar no meio de lugar nenhum. Numa casa que
não era minha, numa cidade que não era minha, num país que não era meu, com uma
família de um homem só que não era, apesar das intersepções e das intenções
(todas elas muito boas), minha. Os nós dos dedos ficavam esbranquiçados,
querendo rachar. Era estranho. Eu parecia me transformar progressivamente em
outra coisa, como se estivesse passando por uma lenta mutação. Talvez eu
virasse um lagarto ou uma daquelas plantas capazes de vicejar no deserto.
Talvez eu me mineralizasse e virasse um rio temporário, daqueles que somem no
leito crestado, na seca, e depois incham e escorrem felizes como se tudo não
passasse disso, escorrer felizes, sem qualquer ameaça. Como se a sua própria
vida de rio não fosse sazonal e quebradiça. Mais de uma vez pensei, durante os
primeiros meses, que aquele não era um lugar feito para os seres humanos, não
mais do que para as baratas. E, no entanto, havia treze milénios que os seres
humanos viviam ali, numa queda de braço com o lugar, muito antes das minas de
ouro e prata do século dezanove. Muito antes de Buffalo Bill. Naquele mês de Julho, o primeiro mês do
meu ano-novo, Fernando me levou a uma piscina pública. As pessoas de pele clara
se estatelavam nas espreguiçadeiras em busca de um bronzeado que custava a
chegar, e que quando chegava tinha um certo avermelhado óbvio demais,
avermelhado demais. Assim como os outros latinos, e como os indianos, minha
pele já bem marrom na origem ficava ainda mais marrom com uma hora de sol. Eu
não sabia muito bem o que fazer com toda aquela melanina fácil, leviana, que se
entregava de coração ao sol como se fosse voluntária de algum rito sacrificial.
Uma mulher falou comigo quando passou pela minha cadeira voltando da piscina,
disse que eu tinha um belo bronzeado. Quando ela sorriu, seus olhos se
afundaram nas dobras de gordura que cobriam o seu rosto. Pensei: ela parece um
travesseirinho de plumas. Ela usava um fato de banho com saiote e tinha mãos
muito pequenas na ponta dos braços obesos, mas caminhava com seus pés
atarracados como se tivesse medo de tocar o chão. Caminhava como se o chão estivesse
cheio de pedras. Cogitei elegância. Não era elegância. Talvez uma certa
desconfiança no acto de caminhar. Talvez aquela mulher nos lembrasse que é
preciso fazer cerimónia com o mundo, que isto aqui não é de brincadeira, que
isto é coisa séria e perigosa, e que o simples gesto de pisar no chão já te
confere uma responsabilidade inimaginável. Ou talvez fosse apenas seu jeito de
caminhar e não tivesse nada a ver com responsabilidade e ninguém tivesse,
aliás, nada a ver com isso. Na piscina, emergi ao lado de um homem bonito, com
cordas grossas de músculos enrolados nos braços duros, e olhei de perto e
percebi que ele tinha cílios louros. Eu não sabia que existiam pessoas de
cílios louros. O homem bonito trocava sorrisos e palavras (mais sorrisos do que
palavras) com uma jovem elástica de sobrancelhas cinzeladas.
Afundei de novo e abri os olhos lá em baixo e vi uma multidão de pernas de vários formatos, tamanhos, tonalidades e espessuras. Tentáculos de um leviatã de águas cloradas, oscilando para cá, para lá, sem critérios nem sincronia. Antes, em Copacabana, havia: biquinis minúsculos. Uma ou outra mulher passando água oxigenada nas pernas para alourar os pelos. Dependendo do ponto, muitas crianças. Dependendo do ponto, algumas prostitutas. Corpos musculosos correndo sob o sol. Corpos flácidos correndo sob o sol. Tangas apertadas delineando o saco dos homens e revelando para que lado ficava o pénis. Quando eu não tinha mais nada para fazer, na praia, brincava de elaborar estatísticas, se havia mais homens com o pénis para o lado esquerdo ou para o lado direito. Agora, em Lakewood, havia: biquinis e fatos de banho grandes em tecidos que às vezes formavam papadas nas ancas. Homens de bermuda. Na beira da piscina, pessoas comendo hambúrguer e batata frita e bebendo cerveja e refrigerante em copos king-size de papel. O tamanho das coisas me surpreendia. São muito caras?, perguntei ao Fernando. Não, ele me disse. Você quer? Eu disse que não. E agradeci, conforme a minha mãe me ensinou a fazer». In Adriana Lisboa, Azul-Corvo, 2010, Quetzal Editores, 2012, ISBN 978-989-722-013-5.
Afundei de novo e abri os olhos lá em baixo e vi uma multidão de pernas de vários formatos, tamanhos, tonalidades e espessuras. Tentáculos de um leviatã de águas cloradas, oscilando para cá, para lá, sem critérios nem sincronia. Antes, em Copacabana, havia: biquinis minúsculos. Uma ou outra mulher passando água oxigenada nas pernas para alourar os pelos. Dependendo do ponto, muitas crianças. Dependendo do ponto, algumas prostitutas. Corpos musculosos correndo sob o sol. Corpos flácidos correndo sob o sol. Tangas apertadas delineando o saco dos homens e revelando para que lado ficava o pénis. Quando eu não tinha mais nada para fazer, na praia, brincava de elaborar estatísticas, se havia mais homens com o pénis para o lado esquerdo ou para o lado direito. Agora, em Lakewood, havia: biquinis e fatos de banho grandes em tecidos que às vezes formavam papadas nas ancas. Homens de bermuda. Na beira da piscina, pessoas comendo hambúrguer e batata frita e bebendo cerveja e refrigerante em copos king-size de papel. O tamanho das coisas me surpreendia. São muito caras?, perguntei ao Fernando. Não, ele me disse. Você quer? Eu disse que não. E agradeci, conforme a minha mãe me ensinou a fazer». In Adriana Lisboa, Azul-Corvo, 2010, Quetzal Editores, 2012, ISBN 978-989-722-013-5.
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