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Foi ao regressar a casa, nessa noite, no seu coche, através das ruas
barulhentas de Galata, sacudido, meio ensonado, que o doutor Ketabdar deu consigo
a sonhar com uma coisa insensata. Coisa que no entanto foi, no dia seguinte, propor
à mãe de Iffett: visto que o estado da filha iria exigir cuidados permanentes durante
anos, visto que não era possível interná-la, ele propunha-se levá-la para Adana,
no sul da Anatólia, onde possuía uma casa; dedicar-se-ia a ela dia e noite, mês
após mês, ano após ano, ela seria a sua única paciente, e pouco a pouco, se Deus
quisesse, havia de voltar a si. Ocupar-se dela dia e noite, ano após ano? E na sua
própria casa? A mãe teria achado o médico pretensioso e inconveniente se ele tivesse
falado assim noutras circunstâncias. Porque aquilo que não era dito tal e qual,
e, no entanto, claramente sugerido, era que o médico, viúvo, pensava em tomar Iffett
por esposa. Noutras circunstâncias, dizia eu, a coisa teria sido impensável.
Mas agora ninguém podia já pensar em casar a filha alienada do soberano caído com
uma das altas personagens que ainda há pouco ambicionavam essa honra. portanto a
mãe resignara-se. Em vez de deixar internar a filha até ao fim dos seus dias, mais
valia confiá-la àquele homem respeitável que parecia querer-lhe bem, que a trataria,
que a preservaria da vergonha e dos escândalos... Estranho lar, não é verdade? um
marido velho que era antes de mais nada um médico assistente; uma jovem esposa demente
que ele rodeava de cuidados e de afecto, mas que passava por vezes dias inteiros
a gemer ou a gritar sem motivo aos ouvidos dos criados, uns extenuados, outros apiedados.
Ninguém duvidava de que se tratava de um casamento fictício, destinado apenas a
evitar a inconveniência da coabitação de um homem e de uma mulher sob o mesmo tecto,
ao abrigo dos olhares. Casamento de conveniência, portanto, casamento de aparência;
ou antes de complacência. Um acto de devoção, em suma. Sim, da parte do velho médico,
uma acção caritativa. Mas, um dia, Iffett ficou grávida. Seria consequência de um
momento de desvario? Ou o fruto de uma terapia audaciosa? Era caso para perguntar!
A acreditar no filho do casal, que é nem mais nem menos que o meu pai, é a segunda
a explicação a reter: o doutor Ketabdar tinha as suas teorias; pensava demonstrar
que uma mulher como a sua, que perdera a razão em consequência de um choque, podia
recuperá-la graças a outro choque. A gravidez, a maternidade... Mas principalmente
o parto. O choque brutal da vida viria compensar o choque brutal da morte. O sangue
resgataria o sangue. Teorias... Teorias... Porque se podia muito bem imaginar o
contrário: o marido médico, constantemente ao lado da esposa, vestindo-a,
despindo-a, dando-lhe banho todas as noites, uma bela e jovem mulher a quem adorava
profundamente, a ponto de lhe consagrar todos os momentos da sua vida, como
poderia ele contemplá-la sem se emocionar? Como poderia percorrer com as mãos e
com os olhos a superfície lisa do seu corpo sem que crescesse nele o desejo?» In
Amin Maalouf, Escalas do Levante, Difel 82, Algés, 1997, ISBN 972-290-355-1.
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