sábado, 8 de outubro de 2016

Escalas do Levante. Amin Maalouf. «O choque brutal da vida viria compensar o choque brutal da morte. O sangue resgataria o sangue. Teorias... Teorias... Porque se podia muito bem imaginar o contrário»

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«(…) Foi ao regressar a casa, nessa noite, no seu coche, através das ruas barulhentas de Galata, sacudido, meio ensonado, que o doutor Ketabdar deu consigo a sonhar com uma coisa insensata. Coisa que no entanto foi, no dia seguinte, propor à mãe de Iffett: visto que o estado da filha iria exigir cuidados permanentes durante anos, visto que não era possível interná-la, ele propunha-se levá-la para Adana, no sul da Anatólia, onde possuía uma casa; dedicar-se-ia a ela dia e noite, mês após mês, ano após ano, ela seria a sua única paciente, e pouco a pouco, se Deus quisesse, havia de voltar a si. Ocupar-se dela dia e noite, ano após ano? E na sua própria casa? A mãe teria achado o médico pretensioso e inconveniente se ele tivesse falado assim noutras circunstâncias. Porque aquilo que não era dito tal e qual, e, no entanto, claramente sugerido, era que o médico, viúvo, pensava em tomar Iffett por esposa. Noutras circunstâncias, dizia eu, a coisa teria sido impensável. Mas agora ninguém podia já pensar em casar a filha alienada do soberano caído com uma das altas personagens que ainda há pouco ambicionavam essa honra. portanto a mãe resignara-se. Em vez de deixar internar a filha até ao fim dos seus dias, mais valia confiá-la àquele homem respeitável que parecia querer-lhe bem, que a trataria, que a preservaria da vergonha e dos escândalos... Estranho lar, não é verdade? um marido velho que era antes de mais nada um médico assistente; uma jovem esposa demente que ele rodeava de cuidados e de afecto, mas que passava por vezes dias inteiros a gemer ou a gritar sem motivo aos ouvidos dos criados, uns extenuados, outros apiedados. Ninguém duvidava de que se tratava de um casamento fictício, destinado apenas a evitar a inconveniência da coabitação de um homem e de uma mulher sob o mesmo tecto, ao abrigo dos olhares. Casamento de conveniência, portanto, casamento de aparência; ou antes de complacência. Um acto de devoção, em suma. Sim, da parte do velho médico, uma acção caritativa. Mas, um dia, Iffett ficou grávida. Seria consequência de um momento de desvario? Ou o fruto de uma terapia audaciosa? Era caso para perguntar! A acreditar no filho do casal, que é nem mais nem menos que o meu pai, é a segunda a explicação a reter: o doutor Ketabdar tinha as suas teorias; pensava demonstrar que uma mulher como a sua, que perdera a razão em consequência de um choque, podia recuperá-la graças a outro choque. A gravidez, a maternidade... Mas principalmente o parto. O choque brutal da vida viria compensar o choque brutal da morte. O sangue resgataria o sangue. Teorias... Teorias... Porque se podia muito bem imaginar o contrário: o marido médico, constantemente ao lado da esposa, vestindo-a, despindo-a, dando-lhe banho todas as noites, uma bela e jovem mulher a quem adorava profundamente, a ponto de lhe consagrar todos os momentos da sua vida, como poderia ele contemplá-la sem se emocionar? Como poderia percorrer com as mãos e com os olhos a superfície lisa do seu corpo sem que crescesse nele o desejo?» In Amin Maalouf, Escalas do Levante, Difel 82, Algés, 1997, ISBN 972-290-355-1.

Cortesia de Difel/JDACT