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«(…)
De noite, a respiração do velho parecia areia a cair nas minhas mãos. Dormi aos
repelões. O tempo resfolegava junto a mim nos meus pesadelos e transformou-se
num ciclope com crostas de sangue nos lábios, como o meu pai, a última vez que
o vira. Arrancou as asas a um papagaio e meteu-me nas mãos a carne mutilada do
bicho. Segurei nele com todo o cuidado, como se fosse um filho meu morto.
Imaginei Tejal no parto, a chamar-me para junto dela. O nosso menino ainda
estaria vivo? Sempre que acordava, os mosquitos zumbiam doidamente aos meus ouvidos,
sussurrando que os meus esforços para salvar o jaina eram em vão. Ao romper do
dia, o meu companheiro cumprimentou-me com um jucundo acenar da mão. Sentado no
chão, tinha as faces encovadas e as costelas salientes, e a pele do peito e da
barriga era um velho pergaminho enrugado. Passeou o olhar das ligaduras dos
meus pulsos até aos olhos e sorriu-se docemente, convidando-me a falar pela
forma como é costume na minha terra natal. Afastei o olhar. Não devias estar
tão ansioso pelas asas da tua próxima vida, disse em concani. O conselho
agastou-me. E não tinha confiança na fala dele, que era rápida e viva, como se
os pensamentos passassem a saltar através do homem. Talvez fosse da dor. Não
respondi, esperando que pensasse que não falava a língua dele e me deixasse em
paz. Mas não, ergueu um dedo recurvo e apontou-mo aos olhos. A minha mente deve
ter ficado muito debilitada durante a reclusão, pois o meu coração ruiu à ideia
de que ele poderia sibilar uma encantação contra mim. Recuando, apoiei-me na
parede. Não tens de ter medo de mim, disse, pronunciando as palavras lentamente,
por julgar que eu era estrangeiro. É que eu já tinha visto os teus olhos azuis.
Como não lhe dei resposta, acrescentou: nas borboletas que chegavam à minha aldeia
na Primavera. Ergueu-se e baixou os braços como se adejasse as asas, drapejando
as mãos com elegância, como um bailarino de Kerala. Sorriu-se, voltando a convidar-me
a falar. Se falares comigo, só vais ter mais problemas, disse eu em concani. Eu
sou um homem amaldiçoado. Então és de cá!, exclamou alegremente, como se fôssemos
já amigos. Então deves saber de que borboletas estou a falar... Sabes? São pretas
pretas, e cada uma delas parece uma noite sem lua, só que têm manchas azuis aqui
e aqui. Tocou os flancos. Na minha aldeia, dizem que são o vento norte feito coisa.
Ainda hoje sinto como resisti à sua voz musical a puxar-me de volta à vida. Não
te servi para nada, disse-lhe, voltando-me para o lado, na esperança de que
conseguiria ser tão duro e insensível como as paredes da prisão. Senti o seu olhar
de curiosidade a cair sobre mim. Será que ele queria que eu prometesse nunca
mais atentar contra a vida? Enterrei a cabeça na enxerga de farrapos e espremi os
olhos, só querendo desaparecer. Passados uns instantes, pensei em confessar-lhe
como tinha morto o meu pai, mas logo achei que o silêncio tinha mais a dar-me do
que qualquer homem. Só mais tarde vim a perceber o que era preciso dizer antes do
mais: nunca te hei-de falar como se tivesses alguma autoridade sobre mim. Só o meu
pai a tinha e matei-o...
Pouco
depois, meteram-nos o pequeno-almoço por uma portinhola da porta interior: o
meu companheiro, de ombros encolhidos, ia recolhendo o arroz para a boca, com
um vagar meticuloso que parecia troçar da minha fome. Como jaina, só lhe era permitido
comer legumes e cereais, e, quando pegou no peixe frito e me fez sinal que o aceitasse,
pus-me a pensar num plano para o afastar de mim. Os guardas devem ter-lhe dado
o peixe por crueldade, para troçarem dele. Quando era rapaz, disse eu,
afastando a oferta dele com um gesto, apanhei uma dessas borboletas pretas de que
falaste. Eu sabia!, disse, com uma gargalhada argentina. Foste atraído por elas.
Voltou a tocar no peito para indicar o sítio das manchas. Foi como que o destino.
Foi, não foi, que achas? Não acredito no destino, respondi com brusquidão. Na
altura, pensava estar a falar verdade, mas, agora, não tenho tanta certeza, pois
muita coisa parece ter acontecido da única forma que podia ter acontecido. Sabia
que, para um jaina, toda a vida é sagrada, até a do mais pequeno verme. Tanto assim
que tinha a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, o velho havia de perguntar
se tinha morto a borboleta. Quando perguntou, a vingança refulgiu-me dentro do peito
como uma estrela negra. Esmaguei-a com os dedos, disse-lhe, e nunca me
arrependi. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Não esbanjes compaixão com uma migalha
de ser que não tem alma nem inteligência, disse eu. Falava como se soubesse do
que estava a falar; a reclusão dera-me uma arrogância amarga e rancorosa e uma voz
professoral que mal reconhecia como minha». In Richard Zimler, Goa ou O
Guardador da Aurora, 2005, Gótica 2000, Difel, 2005, ISBN 978-972-792-145-0.
Cortesia de
Gótica/Difel/JDACT