sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Os Pecados da Rainha Santa Isabel. António Cândido Franco. «Nada levaram consigo, a não ser as fazendas que vestiam. Era Verão e nessa época de ventos quentes do mar e Sol ardente os habitantes da região não vestiam mais que uma longa camisa de linho ou de algodão»

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«(…) O braço-de-ferro da Igreja com os heréticos não era novo, mas ficara-se tão-só pelas palavras. Domingos Gusmão, um encarniçado pregador papal, trajando hábito branco de lá e capeirão negro, chegara uns anos antes à região e em nome da Igreja tentava conter a expansão da heresia, manejando uma palavra inflamada e uma dialéctica arguta e teimosa. O catarismo não mostrara porém abrandar e o papa, nutrido pelas vitórias obtidas em Jerusalém e em Constantinopla, sentira-se forte o bastante para lançar uma cruzada contra cristãos, tirando proveito e experiência das perseguições anteriores, na região de Lião, contra os valdenses, seguidores de Pierre Valdés, um homem que deixara tudo em nome do Evangelho e se dedicara a viver em rigorosa pobreza. Não demoraram as notícias das barbaridades dos cruzados franceses a espalhar-se por todo o Pirenéu, chegando à Península. Saltavam os picos da cordilheira na crista fria da tramontana e introduziam-se destramente por qualquer fresta, penetrando nos recessos das mais recuadas e esquecidas províncias do reino de Aragão. Antes de mais, chegaram novas de Béziers, primeira grande operação militar da nova cruzada. Mal preparada para a guerra, pacífica e opulenta, habitada sobretudo por judeus e mercadores do Mediterrâneo, a cidade logo se rendeu à gigantesca onda dos Franceses. A 22 de Julho de 1209, Arnaud Amary, abade de Cister e legado papal, deu ordem de morte a todos os moradores, refugiados na catedral e na igreja de Santa Madalena. Para o despachado abade afigurava-se tarefa desprezível separar na multidão os devotos conformes dos desviantes. Para encurtar razões, justificou a ordem com seca frase: matai-os a todos! Deus reconhecerá os seus!
E assim foram todos passados à espada, enquanto a rica feitoria comercial era saqueada e incendiada pelos cavaleiros do rei e de Cister. Depois da tomada de Béziers a cruzada avançou para a cidade do Aude, onde se acoutara o jovem visconde Raimundo Roger Trencavel, sobrinho do conde-rei de Toulouse. A cidade, longe do mar, num agro antigo e laborioso, defendia-se melhor que Béziers. Protegida numa cinta muralhada, que datava do tempo do baixo-império romano, tinha o cispado e altivo porte dum castelo feudal. Alertada pelo escandaloso massacre do empório vizinho, Carcassona preparou-se com destemor para o assalto. Avançaram-se linhas de defesa, conduziu-se a população civil ao interior da fortificação, armazenaram-se projécteis para os engenhos; os homens de armas do visconde dispunham-se a jogar alto a vida e a fazer durar o assédio. Nos primeiros dias de Agosto, diante da investida de meio milhão de pessoas, a primeira linha ruiu, mas a alcáçova repeliu o ataque, abrindo brechas importantes nas hostes dos cruzados. Avançaram estes com proposta negocial: contra a rendição da cidade e a entrega dum único homem, Raimundo Trencavel, os Franceses poupavam a vida de todos. Apuparam a proposta com duros doestos os homens de armas, mas aceitou-a o visconde. Se por um, os Franceses garantem a segurança de todos, senhores, danoso homem eu seria se não me entregasse.
Saiu dos muros desarmado e sozinho. Não ousara despir ainda assim a couraça, os braçais e os coxotes com que comandara a investida dos cavaleiros na primeira linha e depois a defensão dos muros. Na mão esquerda, desembaraçada da manopla, levava o camal de ferro. Atravessou de braços caídos a leiva de terra que separava a barbacã da cidade do arraial invasor. Tomai-me como refém, mas poupai os bons vassalos que ali vedes, disse ele, quando viu diante de si os barões franceses. E apontava com a mão direita as ameias da cidade, onde os magotes de gente se apertava. Em vez de massacrados, os moradores de Carcassona foram desta feita expulsos de suas casas. Nada levaram consigo, a não ser as fazendas que vestiam. Era Verão e nessa época de ventos quentes do mar e Sol ardente os habitantes da região não vestiam mais que uma longa camisa de linho ou de algodão, derivação imediata, sem alterações dignas de assento no canhenho da evolução do traje, da túnica ou da tunicela dos romanos. Essa leve e suja envoltura foi tudo o que puderam salvar; até na capa de lá, de capuz bordado e botões de osso, que se lançava por cima da camisa mal as noites frias de Outubro tocavam o mundo, foi defeso aos retirantes tocar. Raimundo Trencavel, entunicado ou não, foi assassinado aos vinte e quatro anos e o legado papal, Arnaud Amaury, deitou os olhos aos barões de França. Era uma fieira de trogloditas mais assustadores que ursos. Entre eles tirou o mais feroz, Simão Monforte, e deu-lhe o viscondado vacante. Estava feito o novo visconde de Béziers, Carcassona e Albi. Em Aragão, estes acontecimentos caíram mal. Na Aljaferia de Saragoça, Pedro II agitou-se. O massacre de Béziers pareceu-lhe bárbaro e inútil. Demais, era impensável que se pudesse criar, depois dum homicídio, um viscondado na vizinhança de Mompilher, senhorio de Barcelona, sem consentimento dele, rei da confederação aragonesa-catalã. Mal andam os aleivosos, quando assim esfolam a coroa de Aragão e matam os bons vassalos, repetia ele, com censura magoada, aos que lhe falavam do assunto». In António Cândido Franco, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-289-2.

Cortesia de Ésquilo/JDACT