Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa
(c1570_1590)
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e wikipedia
«Entre
1536 e 1539, o pintor régio Gregório Lopes realizava para a Charola do Convento
de Cristo, em Tomar, uma tábua representando o martírio de S. Sebastião.
Integrada no âmbito da ampla reforma espiritual e material da casa religiosa,
iniciada por Manuel I e continuada por João III, a escolha do tema, de raízes
profundas na tradição do ocidente medieval, terá, porventura, obedecido
igualmente a razões de carácter circunstancial: em primeiro lugar, a
proximidade espiritual à principal vocação do Santo, militar e defensor da
igreja, particularmente adequada a uma ordem monástico-militar como a de
Cristo, sobretudo num momento em que se revia a regra à luz dos princípios
fundacionais do cristianismo; em segundo lugar, a renovada importância que a
figura de S. Sebastião despertava na década de trinta do século XVI. De facto, a
devoção já longa a este mártir romano como protector contra a peste, flagelo
que por esses mesmos anos assolava o reino e, com especial violência, a
capital, ganhava um novo alento com a chegada de uma importante relíquia: o
braço de S. Sebastião que, supostamente saqueado a uma igreja milanesa, fora
trazido de Roma para Lisboa em 1531. Do seu sucesso contra as epidemias, dá
conta Francisco Holanda quando, em 1571, refere os 40 anos que a cidade gozou
de imunidade graças ao poder propiciatório da referida relíquia. É aliás a sua
extrema relevância que, porventura, explica a lenda posta a circular logo no
século XVII de que fora oferecida a João III pelo imperador Carlos V, seu
cunhado. Desta tábua, já exaustivamente estudada no âmbito do universo pictórico
por diversos autores, interessa-me focar um aspecto particular do discurso
formal: a arquitetura que, em plano de fundo, encerra o campo figurativo e
serve de cenário ao martírio do Santo.
De
acordo com a tradição iconográfica, o episódio do primeiro martírio de S.
Sebastião, atado a uma coluna ou árvore e rodeado de vários archeiros que sobre
ele disparam uma intensa chuva de flechas, ocorre num espaço aberto com uma
cidade por fundo. A partir do século XV, e sobretudo por via italianizante, a
urbe representada é usada para contextualizar espacialmente a narrativa: a
cidade de Roma, palco do suplício do guarda pretoriano. Ruínas clássicas,
pórticos e colunatas ou edifícios de grande porte e planta centrada, constituem
um expediente comum aos pintores do renascimento que assim aliam à marcação
espacial a oportunidade de evocar directamente esse mundo aberto à pesquisa que
era então a Antiguidade. Opção menos frequente no norte da Europa, onde as
arquitecturas fundeiras replicam preferencialmente as cidades flamengas em que
se movem os próprios artistas.
Por
vezes conjugam-se tempos e realidades diferentes como no martírio de S.
Sebastião da autoria de Luca Signorelli, onde a cidade medieval surge inconfundível
por entre múltiplas e imponentes ruínas romanas. E tal não se deve apenas ao princípio
de coetaneidade que tão frequentemente caracteriza as representações da
época, particularmente visível, por exemplo, nas vestes ou cortes de cabelo das
figuras. No caso do espaço urbano, e concretamente na representação do casario
vulgar, a coetaneidade seria expectável se pensarmos que em 1498 o conhecimento
da cidade clássica se reduzia praticamente aos edifícios de prestígio, as
grandes ruínas ainda acessíveis, aliás entusiasticamente estudadas pelos
próprios artistas modernos. A cidade comum, o casario em extensão, só a partir
dos finais do século XVIII e das primeiras campanhas arqueológicas no Sul de
Itália, seria minimamente conhecido.
Também
Gregório Lopes combina as duas tendências na sua tábua, a flamenga e a
italiana, ou, de forma mais precisa, a cidade coeva e a cidade antiga. A
estrutura narrativa divide-se em vários registos justapostos: três em
profundidade, três outros em superfície. A cena principal ocupa o primeiro
plano, com o Santo ao centro da composição, ladeado pelos seus algozes; Santo e
coluna constituem um eixo vertical que divide a tábua em duas partes: à
direita, toda uma estrutura formal que convoca a Roma das perseguições de
Diocleciano, materializada na grande rotunda directamente inspirada, como bem
viu Paulo Pereira, na edição de 1521 de César Cesariano do tratado de Vitrúvio,
mas também pela visão longínqua de outros martírios que a coluna de fumo não
deixa passar despercebidos; na metade contrária, preenchendo todo o lado
esquerdo do campo figurativo e despida de qualquer nota clacissizante, surge a
cidade corrente ou do quotidiano, onde a vida parece decorrer indiferente ao
drama que, simultaneamente, ocorre em primeiro plano.
Ora
é justamente essa cidade, aparentemente feita de casario anónimo e
indiferenciado, que me parece justificar uma nova atenção em função da recente
identificação de uma outra pintura igualmente quinhentista. Refiro-me ao quadro
pertencente à Kelmscott Manor Collection que, em Novembro de 2010,
integrou uma exposição dedicada a marfins cingaleses do século XVI realizada no
Museu Rietberg de Zurique, entre cujos curadores se encontrava Annemarie Jordan
Gschwend, responsável pelo seu reconhecimento temático. Datável das últimas
décadas do século XVI e de autor desconhecido, mas ao que tudo indica de origem
flamenga, o quadro, hoje cortado em duas telas, representa a Rua Nova dos
Mercadores, em Lisboa. Se dúvidas restassem, a famosa grade que no século
XVI separava a área dos cambistas e que, por tão marcante, viria a justificar o
outro topónimo por que ficou conhecida, Rua Nova dos Ferros, seria suficiente
para garantir o reconhecimento daquela importante artéria de Lisboa». In Luísa
Trindade, Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a
tábua do martírio de S. Sebastião de Gregório Lopes, Revista Medievalista, Nº
20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.
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