quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A noite de Babilónia. Juliette Benzoni. «Ipt-resit. Assim chamava a Tebas das Cem Portas ao novo templo de Lucsor que o faraó Amen-hotep III acabava de mandar construir na margem oriental do Nilo»

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Ao princípio eram os deuses…
«(…) O senhor feudal, porque bravo entre os bravos (ou maligno entre os malignos), tomou o lugar da divindade. As coisas, claro, foram-se alterando ao longo dos dias e das noites. O direito sagrado dos primeiros tempos transformou-se depressa num privilégio aplicado em exclusivo às raparigas mais belas, mas entretanto os pretendentes também começaram a deixar de querer ver os mais corajosos do que eles abrirem a porta misteriosa por trás da qual esperava o templo da fecundação. Mas voltemos aos tempos em que os deuses estendiam o seu poder pelos quatro pontos cardeais. Esplêndida, portanto, era a noite que a Babilónia oferecia ao seu deus. Bastante mais austera, porém, era a que a severa Assíria oferecia, em Kalah e depois em Ninive, ao seu deus Nabn, no terceiro dia do mês de Igyar. Não havia orgias nem virgens divinas oferecidas nuas ao desejo de Nabn porque nenhum humano era digno de o encarnar incluindo o rei. Quem entrava na câmara, a meio caminho do céu, onde a esperava uma sacerdotisa, era a sua estátua de ouro e esmalte. Naquele dia o seu leito era consagrado na cidadela, o deus penetrava na câmara e regressava ao seu lugar no dia seguinte..., sem, entretanto, ter feito grande coisa.
Após a consagração do leito e a apresentação das oferendas rituais, a sacerdotisa pegava numa cana, mergulhava-a em óleo perfumado, purificava os pés da imagem divina, em seguida aproximava-se do leito, perfumava-o três vezes, ia beijar os pés da estátua e por fim sentava-se, após o que os sacerdotes regressavam para consagrar madeiras aromáticas, queimá-las e fazer libações com as cinzas. Em seguida vinha o banquete nupcial: longas e sumptuosas mesas em honra dos cruéis deuses do panteão assírio, mas só as efígies de ouro ou de prata é que tomavam assento, servidas com respeito e reverência. Por fim, a noite terminava com uma oração pelo rei, para que os deuses aceitassem abençoar as suas armas, sempre mais ou menos prontas a servi-los. Ao nascer do Sol o pobre Nabn era levado a casa em procissão. Instalavam-no num carro ao lado do condutor e levavam-no a dar uma volta até um certo bosque sagrado, onde ele recebia as homenagens e os sacrifícios de mais sacerdotes barbudos, mas onde não encontrava qualquer bacante, atraente ou não, disposta a brincar com ele, após o que o reintegravam, durante mais um ano, no seu templo obscuro, onde as únicas distracções eram as salmodias dos sacerdotes, os fumos do incenso, os sacrifícios e o sangue dos animais degolados, alternando com alguns banhos de pés oleosos e, nos dias de jejum, com o massacre ritual de alguns prisioneiros de guerra ou de alguns escravos quando o inimigo não estava pelos ajustes...
Têm-se os deuses que se merecem. Nabn não era um deus alegre. Em 612 a. C., o império assírio, rapace e guerreiro por natureza, desmoronou-se sob os golpes dos Medos e dos Babilónios, deixando atrás de si os gigantescos touros androcéfalos alados, os baixos-relevos do palácio de Sargon, em Khorsabad..., e também a morte fantasista de Sardanapale, obra do pincel romântico e genial, mas pouco documentado, de Eugène Delacroix, eternizando na memória dos homens a recordação dos Jardins Suspensos de Babilónia, o sonho de Sémiramis e a espantosa cultura das asas de tijolo nascida na aurora do mundo com os Sumérios e que ofuscou os séculos à custa de vários povos escravizados, mas que também concebeu a matemática e a ciência do Céu antes de se perder, pela mão de Deus, nas areias do deserto...

O harém de Amon…
Ipt-resit. Assim chamava a Tebas das Cem Portas ao novo templo de Lucsor que o faraó Amen-hotep III acabava de mandar construir na margem oriental do Nilo a pedido de Tié, a sua amada Grande Esposa real, para ali celebrar todos os anos as núpcias de Amon-Ré com a terra do Egipto, fecundada pela sua semente divina para ainda maior riqueza e felicidade do povo. Como grande construtor que era, Amen-hotep III mandara também construir na outra margem do rio, a dos mortos, porque era nela que o Sol se punha, um palácio gigantesco, do qual só restam, infelizmente, as famosas colunas de Memnon, para nele viver e reinar sob a protecção da Eternidade, para além de ter mandado ampliar e embelezar, na margem da vida e do Sol nascente, o grande templo de Karnak, templo principal de Amon, cujo novo santuário era apenas uma dependência». In Juliette Benzoni, Na Cama dos Reis, Noites de Núpcias, 2010, tradução de Nuno Lorena, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2012/2013, ISBN 978-989-657-351-5.

Cortesia de PlanetaM/JDACT