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Eles estão no meio de nós
«Que Deus me perdoe, mas não somos todos Charlie.
O fanatismo não está só em jiadistas, nas caixas de comentários das redes
sociais ou numa claque de futebol. Há algo de bafiento, fanático e imoral que se
esconde numa das mais conservadoras organizações da Igreja Católica: o Opus Dei.
A obra de Deus ajuda a que os disparates em nome de uma entidade divina não estejam
apenas do outro lado do Mediterrâneo, mas em toda a parte. Ela está no meio de nós.
Se não a podemos (nem queremos) vencer, vamos torná-la mais visível. Comecemos por
negar, como Pedro. Não, o Opus Dei não é o Daesh nem um albino construído por Dan
Brown. Não, o Opus Dei não é uma organização criminosa. Não, o Opus Dei não
assassina Papas que não lhe interessam. Já estamos entendidos com os nãos. Mas são
os sins que justificam o livro. Espreitemos através da fechadura dos centros,
das igrejas e das residências do Opus Dei. O Opus Dei também tem os seus burquínis
e o pensamento livre está (muito) longe de ser a prática da organização. Os membros
da obra usam mesmo uma espécie de arame farpado na perna duas horas por dia, chicoteiam
mesmo as nádegas uma hora por semana, fora outras mortificações corporais de membros
não celibatários, como um ajoelhar sobre o milho, após o acto sexual. Séculos
depois, ainda há tiques da maior vergonha da Igreja Católica, a Inquisição (maldita), e não são
poucos. O terror do Opus Dei contra a cultura não se faz à bala de Kalashnikovs
nem pela violência directa contra os outros, embora seja infligida por via de uma
quase-lavagem cerebral e promovida uma certa forma de masoquismo, acaba por ser
uma decisão individual, mas existe na sombra. Há um guia bibliográfico, uma espécie
de índex, que proíbe livros (ou desaconselha, no forçado eufemismo da obra), há
membros proibidos de ir ao cinema, ao teatro, de assistir a jogos de futebol, desincentivados
a ter conta na redes sociais, a participar em partidos de esquerda, numa lista infindável
de limitações de direitos humanos e de livre pensamento. Só somos Charlie se nos
indignarmos, se escrevermos, se lermos, se simplesmente dissermos, como tantas vezes
em frente à televisão, perante a destruição de Palmira pelo Daesh ou a barbárie
do Boko Haram, quando proíbe crianças de frequentarem escolas na Nigéria: não pode
ser! E, numa escala diferente e mais benigna, há também muita indignação nas páginas
que se seguem, muitos não pode ser.
O Opus Dei tem os seus méritos, com uma obra
social invejável em muitos países, mas peca ao querer controlar a mente das
pessoas que ajuda. O Opus Dei ajuda a acreditar que a fé move montanhas, mas demonstra
que, infelizmente, a fé também move offshores. O Opus Dei aceita membros pobres
e desfavorecidos, mas dá-lhes actividades duras, enquanto os abastados sobem na
hierarquia de uma forma fulgurante, numa progressão social que faz lembrar,
mais uma vez, a Idade Média. Provas? Seguem nas próximas páginas. O prelado nega
querer o poder, mas procura-o loucamente tanto na Igreja Católica como na sociedade
civil, seja na política, nas finanças ou no desporto. As pessoas da organização
(arrisco dizer a esmagadora maioria) são simpáticas, bem-intencionadas e seria injusto
tomar todos os membros da obra como malfeitores. Na verdade, poucos devem ser
os maliciosos, pois muitos são vítimas de uma armadilha que os prende em nome
da fé. Um recrutamento quase sempre feito pela via da família ou numa fase de indefinição
da adolescência que os leva a ficarem prisioneiros desta forma de encarar a vida».
In
Rui Pedro Antunes, Opus Dei, Matéria-Prima Edições, Lisboa, 2016, ISBN
978-989-769-075-4.
Cortesia de MPrima
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