sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Portugal na Espanha Árabe. António Borges Coelho. «Muça dirigiu-se contra as cidades da costa do mar onde havia governadores do rei de Espanha que se tinham tornado donos delas e dos territórios circunvizinhos. A capital destas cidades era a chamada Ceuta»

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«(…) Então o Portugal godo é afinal mouro? No fundo galaico-luso-celta-romano-africano incorporaram-se não poucos cromossomas russos, germanos e até mongóis. Mas o afluxo étnico de berberes e árabes (iemenitas, egípcios e sírios) ultrapassou o contributo bárbaro medieval. Além dos berberes e árabes da conquista, companheiros de Tárique e Muça, vieram as tropas sírias de Balge, estacionando um corpo egípcio em Beja e Ossónoba. Silves foi povoada por árabes iemenitas. Abderamão I, o fundador do estado omíada do Andaluz chamou à Península familiares e clientes de todos os pontos do Islão. Até ao fim do califado de Córdova este afluxo não teve interrupção. Os berberes eram, porém, em maior número. Berbere era o grosso do exército de Tárique. Após a conquista fixaram-se nas zonas norte e montanhosas da Península. Ibne Haiáne assinala no século X a existência de um grosso cinturão berbere nos territórios limítrofes de Portugal a leste de que ainda subsistem vestígios. Abderramão III, Aláqueme II e sobretudo Almançor recrutaram numerosas tropas berberes para não falar dos escravos e das escravas sudanesas. Berberes sarianos foram os triunfadores almorávidas que sustiveram o avanço de Afonso VI; berberes, os almóadas que durante um século contiveram com as suas armas a arremetida dos estados cristãos.
Por certo a Reconquista trouxe também importantes afluxos francos (franceses, flamengos, ingleses, coloneses, borguinhões) assinalados pelas fontes históricas e a toponímia ou por nomes de extracção popular como Gumersindo ou Edwiges. Mas acaso os afluxos francos apagaram os cromossomas árabes e berberes? A maioria dos mouros abdicou pouco a pouco depois da cheia inicial, da sua algarávia e dos seus nomes pagãos. Mas tal como a servidão saída nominalmente dos homens, se escondia na terra, também os nomes arabizados abandonavam os homens mas ficavam presos às terras e aos objectos da vida quotidiana. Mesmo assim ainda sobraram muitos Alis, muitos Baçãos, muitas Fátimas. Os mouros não morreram todos rachados pelas espadas dos neogodos. Que se bem explorássemos, ainda hoje, o quadrilátero que nos coube em sorte, muita surpresa nos estava reservada. Giacometti identificou há pouco nos campos da Malveira uma canção de trabalho que ouvira em Marrocos; a cantora berbere Taos Amrouche levou este Inverno a Paris melodias berberes que a tia Beatriz Mancebo de Alberca (arredores de Salamanca) conservara da noite dos tempos, melodias vestidas agora com palavras cristãs: Santo António bendito tem uma cabra...

A conquista de Espanha. Tárique
Muça dirigiu-se contra as cidades da costa do mar onde havia governadores do rei de Espanha que se tinham tornado donos delas e dos territórios circunvizinhos. A capital destas cidades era a chamada Ceuta. E nela e nas comarcas mandava um infiel, de nome Julião, a quem Muça ibne Noçáir combateu, mas achou que tinha gente tão numerosa, forte e aguerrida como até então não tinha visto. E não podendo vencê-la, voltou para Tânger e começou a mandar algaras que devastassem os arredores, sem que por isso lograsse a sua rendição, porque entretanto, iam e vinham de Espanha barcos carregados de víveres e tropas e eram, além disso, amantes do seu país e defendiam as suas famílias com grande esforço.
Nisto morreu o rei de Espanha, Vitiza, deixando alguns filhos, entre eles Opas e Sisberto, que o povo não quis aceitar. E alterado o país, tiveram por bem eleger e confiar o mando a um infiel chamado Rodrigo, o homem resoluto e animoso que não era de estirpe real, mas chefe e cavaleiro. Os grandes senhores de Espanha costumavam mandar os seus filhos, varões e fêmeas, para o palácio real de Toledo, na altura fortaleza principal de Espanha e capital do reino, a fim de que estivessem às ordens do monarca a quem só eles serviam. Ali se educavam até que, chegados à idade núbil, o rei os casava, provendo-os para isso de tudo o necessário. Quando Rodrigo foi proclamado rei, prendeu-se da filha de Julião e forçou-a. Escreveram ao pai o sucedido e o infiel guardou o seu rancor e exclamou: pela religião do Messias, que hei-de transtornar o seu reino e hei-de abrir uma cova debaixo dos seus pés». In António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, História, Colecção Universitária, Editorial Caminho, 1989, ISBN 972-21-0402-0.

Cortesia de Caminho/JDACT