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«(…) Então o Portugal godo é afinal mouro? No fundo galaico-luso-celta-romano-africano
incorporaram-se não poucos cromossomas russos, germanos e até mongóis. Mas o
afluxo étnico de berberes e árabes (iemenitas, egípcios e sírios) ultrapassou o
contributo bárbaro medieval. Além dos berberes e árabes da conquista,
companheiros de Tárique e Muça, vieram as tropas sírias de Balge, estacionando
um corpo egípcio em Beja e Ossónoba. Silves foi povoada por árabes iemenitas.
Abderamão I, o fundador do estado omíada do Andaluz chamou à Península
familiares e clientes de todos os pontos do Islão. Até ao fim do califado de
Córdova este afluxo não teve interrupção. Os berberes eram, porém, em maior número.
Berbere era o grosso do exército de Tárique. Após a conquista fixaram-se nas
zonas norte e montanhosas da Península. Ibne Haiáne assinala no século X a existência
de um grosso cinturão berbere nos territórios limítrofes de Portugal a leste de
que ainda subsistem vestígios. Abderramão III, Aláqueme II e sobretudo Almançor
recrutaram numerosas tropas berberes para não falar dos escravos e das escravas
sudanesas. Berberes sarianos foram os triunfadores almorávidas que sustiveram o
avanço de Afonso VI; berberes, os almóadas que durante um século contiveram com
as suas armas a arremetida dos estados cristãos.
Por certo a Reconquista trouxe também importantes afluxos francos
(franceses, flamengos, ingleses, coloneses, borguinhões) assinalados pelas fontes
históricas e a toponímia ou por nomes de extracção popular como Gumersindo ou
Edwiges. Mas acaso os afluxos francos apagaram os cromossomas árabes e
berberes? A maioria dos mouros abdicou pouco a pouco depois da cheia inicial,
da sua algarávia e dos seus nomes pagãos. Mas tal como a servidão saída nominalmente
dos homens, se escondia na terra, também os nomes arabizados abandonavam os
homens mas ficavam presos às terras e aos objectos da vida quotidiana. Mesmo
assim ainda sobraram muitos Alis, muitos Baçãos, muitas Fátimas. Os mouros não
morreram todos rachados pelas espadas dos neogodos. Que se bem explorássemos,
ainda hoje, o quadrilátero que nos coube em sorte, muita surpresa nos estava
reservada. Giacometti identificou há pouco nos campos da Malveira uma canção de
trabalho que ouvira em Marrocos; a cantora berbere Taos Amrouche levou este Inverno
a Paris melodias berberes que a tia Beatriz Mancebo de Alberca (arredores de
Salamanca) conservara da noite dos tempos, melodias vestidas agora com palavras
cristãs: Santo António bendito tem uma cabra...
A conquista de Espanha. Tárique
Muça dirigiu-se contra as cidades da costa do mar onde havia
governadores do rei de Espanha que se tinham tornado donos delas e dos territórios
circunvizinhos. A capital destas cidades era a chamada Ceuta. E nela e nas
comarcas mandava um infiel, de nome Julião, a quem Muça ibne Noçáir combateu,
mas achou que tinha gente tão numerosa, forte e aguerrida como até então não
tinha visto. E não podendo vencê-la, voltou para Tânger e começou a mandar
algaras que devastassem os arredores, sem que por isso lograsse a sua rendição,
porque entretanto, iam e vinham de Espanha barcos carregados de víveres e
tropas e eram, além disso, amantes do seu país e defendiam as suas famílias com
grande esforço.
Nisto morreu o rei de Espanha, Vitiza, deixando alguns filhos, entre
eles Opas e Sisberto, que o povo não quis aceitar. E alterado o país, tiveram
por bem eleger e confiar o mando a um infiel chamado Rodrigo, o homem resoluto
e animoso que não era de estirpe real, mas chefe e cavaleiro. Os grandes
senhores de Espanha costumavam mandar os seus filhos, varões e fêmeas, para o
palácio real de Toledo, na altura fortaleza principal de Espanha e capital do
reino, a fim de que estivessem às ordens do monarca a quem só eles serviam. Ali
se educavam até que, chegados à idade núbil, o rei os casava, provendo-os para
isso de tudo o necessário. Quando Rodrigo foi proclamado rei, prendeu-se da
filha de Julião e forçou-a. Escreveram ao pai o sucedido e o infiel guardou o
seu rancor e exclamou: pela religião do Messias, que hei-de transtornar o seu
reino e hei-de abrir uma cova debaixo dos seus pés». In António Borges Coelho,
Portugal na Espanha Árabe, História, Colecção Universitária, Editorial Caminho,
1989, ISBN 972-21-0402-0.
Cortesia de
Caminho/JDACT