jdact
Palacioli,
Paço de Sousa, Anégia, ano 997
«(…)
De facto, Muhammad Abiamir, o seu verdadeiro nome, ocupava, desde 978, o cargo
de hajib, o primeiro-ministro dos Omíadas. Havia conseguido a sua primeira importante
vitória como comandante militar em 977, quando invadiu com sucesso o Reino de
Leão e, a partir de então, passou a aterrorizar todos os lugares por onde passava
com as suas permanentes aceifas estiais. Saqueou, matou, destruiu, pilhou tudo o
que encontrara pela frente, com especial gosto pela humilhação e profanação dos
santuários da cristandade. Concentrara em si todos os poderes, eclipsando o próprio
jovem Califa Hisham II. Todavia, naquele canto mais ocidental da Península,
acreditava-se que Almançor não pretendia ali voltar, por estar mais concentrado
na zona central de Leão e em Castela. Estava visto que assim não era! Ouroana
estranhou a falta de reacção dos monges às ordens do ginete. Só depois
compreendeu que apenas ela entendia a língua dos árabes. Para não chamar a atenção
sobre si, decidiu, também ela, não acatar de imediato as instruções. Mas a ordem
ecoou, de seguida, em perfeita língua romanço, a falada nas terras que
acreditavam que Jesus era o verdadeiro filho de Deus, oriunda daquele que detinha
a missão de intérprete do exército islâmico. A reacção já foi diferente: a noviça
entreviu os rostos aflitos dos seus, ao perceberem quem tinham pela frente. Todos
cumpriram com prontidão.
Almançor
fez avançar o seu alazão até junto do primeiro dos monges ajoelhados ao longo
do ribeiro e fez-se passar lentamente em frente de cada um deles. Parava junto de
alguns cativos, especialmente mulheres. Com a espada, fazia-os levantar a cabeça,
deixando comentários para o jovem ginete que o seguia a pé. A ponta da espada esfriou
o queixo de Ouroana. Tolhida, ergueu a cabeça e viu um negro fulminante afogar o
azul celeste que os seus olhos alumiavam no momento. Os de Almançor cresceram
de espanto, ao mesmo tempo que um misterioso sorriso se lhe desenhava no rosto.
Agarrou os pêlos da sua barba bem aparada com a mão esquerda e, com a direita,
levantou a bayda. Calmamente, alisou os seus longos cabelos brancos, voltando a
tapar a cabeça, e, com o dedo indicador direito, coçou uma vincada cicatriz que
exibia na face. O frio metal desceu ligeiramente e acariciou demoradamente os hirtos
seios da jovem indefesa que se escondiam por dentro do hábito que fora preto e branco,
mas que, então, mais parecia a vestimenta de um mendigo. A fuligem, as cinzas e
a poeira desfiguraram-no completamente. A mão amarelenta do comandante árabe fez
subir a espada, roçando ao de leve a orelha direita de Ouroana, até chegar a um
ponto acima da sua testa. Baixou-a depois ligeiramente, fazendo-a penetrar por debaixo
do véu preto que completava o seu hábito monacal. Rodou o metal até ficar com a
lâmina de forma perpendicular ao topo da cabeça e, com um movimento brusco e forte,
rasgou-o, permitindo que se soltasse uma longa e encantadora cabeleira loura.
Hmmm...
Que belos cabelos! Lembram-me algo ou alguém... Parecem um ondulante campo de trigo
do al-Andalus!, gracejou Almançor, deixando-se enlevar pelo agradável efeito que
produzia a visão daquela mulher de pele alva e brilhante. Os olhos do árabe abriram-se
ainda mais e os seus lábios desceram da posição de sorriso inicial até se tornarem
arredondados. Que o Todo-Misericordioso me perdoe!... Mas é muita beleza junta numa
infiel! Será certamente uma escrava bem disputada nos mercados de Córdova para
o harém de um piedoso e rico muçulmano, asseverou Almançor, ainda intrigado com
a fugaz ideia de ter visto algures aquele rosto. Atrás de si, um soldado sorriu,
sardónico, enquanto manifestava um concordante aceno com a cabeça e olhava a noviça
com mal contida lascívia. As faces de Ouroana tonalizaram a raiva que lhe ardia
por dentro. Não evitou uma sequência de pestanejos, nem logrou conter o descontrolo
das suas batidas cardíacas. Voltou-lhe ao pensamento aquele sonho que lhe definira
a sua missão. E, enquanto via Almançor e o seu sequaz prosseguirem a inspecção
aos demais ajoelhados, atravessava pela sua mente um novo turbilhão de ideias e
de imagens sem um sentido definido: ora se via a morrer à espada de um árabe e,
esvaída em sangue, atirada ao ribeiro, ora fugia com as tropas islamitas no seu
encalço, ora salvava o mundo do infiel inimigo, à frente de um exército cristão».
In
Alberto S. Santos, A Escrava de Córdova, Porto Editora, 2008, ISBN
978-972-004-166-1.
Cortesia de
PEditora/JDACT