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O banquete de Adrianópolis. Março de 1305.
Constantinopla e Adrianópolis
«(…) No dia 23 de Março de 1305, choveu,
copiosamente, em Constantinopla. Maria choveu, também: lágrimas verdes nos
olhos da súplica, da admiração pelo marido, mas oprimidos pela ausência
pressentida. Ela me protegerá, como sempre o fez com todos os seus possuidores,
ao longo do tempo cristão. Como também em todas as batalhas que venci contra os
turcos... É o nosso segredo, não esqueças!... Ninguém mais conhece os seus
poderes, mas temos a obrigação de a levar a casa. Roger, aquela cidade traz
maus augúrios! Toda a gente sabe que, há cerca de mil anos, as tribos
germânicas, alanos incluídos, derrotaram os romanos em Adrianópolis... Foi o
prenúncio da queda de Roma! (a batalha de Adrianópolis, de 9 de agosto de 378,
onde as tribos germânicas comandadas por Fritigerno mataram cerca de 20 000 dos
melhores soldados romanos comandados pelo imperador Valente, é conhecida como o
prenúncio da queda do Império Romano do Ocidente)… E se alguma coisa te
acontece, quem sabe não será um presságio da queda da Nova Roma?!... O rosto de
Maria era um mar revolto. Seis dias mediavam a capital bizantina de
Adrianópolis, na Trácia. Roger carregou aquela despedida ao longo de toda a
viagem. Mas o seu espírito cavaleiresco julgava ter encontrado em Miguel IX
Paleólogo, co-imperador e filho de Andrónico, a luz da lealdade e da correcção.
E confiava, sobretudo, nos feros trezentos cavaleiros e também nos mil infantes
almogávares que o acompanhavam. Em Constantinopla, ficara o resto da Companhia,
chefiada por Berenguer de Entenza, com Bernardo de Rocafort, o senescal do
exército, aguardando, com impaciência, o seu regresso. Já em Adrianópolis, a festa
não podia estar mais cuidada para agradar ao grande comandante, a quem
Andrónico acabava de conceder o título de César do Império, a terceira
dignidade do estado, e que não se utilizava havia mais de 400 anos. Ao mesmo
tempo, atribuiu-lhe o feudo de toda a Ásia Menor, com excepção das cidades. Por
todo o Império, o brilho de Roger de Flor ofuscava quase tanto como o dos dois
co-imperadores. Por isso, Miguel, apesar de se desfazer em públicos elogios,
era um jovem incomodado com o fulgor dos sucessos do esposo da prima, até
porque era a primeira vez que tão rara dignidade era concedida a alguém
estranho à elite da nobreza bizantina. Depois de sucessivos dias de festejos, e
sabendo das intenções de Roger em levantar a tenda para voltar, de imediato, a
Constantinopla, Miguel cantou-lhe a melodia dos sedutores. Será o último
banquete, Roger! Não nos farás essa desonra! Vários dias de gula e luxúria
haviam já animado a cidade. Os chefes almogávares não paravam de receber moedas
de ouro, presentes que lhes atiçavam a avidez. De festa para festa, foram
baixando os níveis de alerta, afoitando-se com a intemperança dos glutões às
exóticas e fartas iguarias, às intermináveis taças de vinho, ao deleite derramado
pelos devaneios ritmados das bailarinas, expressamente convocadas para as
cerimónias. Nem se importaram que Girgón, o chefe dos alanos, estivesse na
cidade, bem como inúmeros turcopoles comandados pelo búlgaro Basila. Muito bem,
Miguel! Os meus homens aceitarão apenas um banquete mais: amanhã! A seguir,
partiremos sem demoras! O dia 5 de Abril de 1305 foi escolhido para ser o
último. Roger de Flor deu instruções a todos os companheiros para voltarem a Constantinopla,
com a alba da manhã seguinte, para se juntarem aos que ali haviam ficado, e
partirem, sem demoras, para a sede do novo feudo, na Anatólia. Mas, por essa
altura, já cerca de cinco mil soldados imperiais haviam entrado em
Adrianópolis. Miguel embalou a Companhia com uma boda do
Olimpo. Zeus presidia à corte dos céus. As damas mais ilustres do império,
Afrodites, Artémis, Heras, Demeteres, iluminavam o ágape celestial, um cenário perfeito,
que ainda mais animou os almogávares. Roger, espero que tenhas fruído do melhor
banquete que a tua vida alguma vez te proporcionou. É a prova da minha amizade
e admiração por todos os teus feitos, em nome do Império Bizantino, anunciou, em
voz alta, como uma velha raposa. Agora, se me permites, tenho de me ausentar...,
negócios importantes... À saída do salão, uma discreta ordem a Girgón fez
entrar milhares de soldados alanos. Ébrios de vinho e de luxúria, sem armas com
que se defendessem, os almogávares eram o rosto da surpresa e do desespero, frente
às lâminas afiadas de milhares de atacantes preparados para um banquete de
carne humana e esguichos de sangue quente. Os almogávares urraram toda a raiva
do mundo, loucos por perceberem que tinham sido encurralados, como gado para o
matadouro, tendo de lutar, novamente em menor número, mas, agora, sem armas.
Cobardes, deem-nos as nossas espadas! Bando de cobardes!! Gritavam, a espumar a
cólera, enquanto procuravam formar uma barreira com as mesas. Filhos de cadelas
raivosas, lutem com honra! Mesmo combatendo com bravura, vendendo cara cada uma
das suas vidas, os soldados hispânicos foram caindo, um a um, trespassados pelo
fio da espada cruel dos alanos. O chefe, matem o chefe deles! A voz de
Girgón sobrepunha-se à açougada em que se transformara o salão do último
banquete de Adrianópolis. Pelo sangue de Jesus que a terra bebeu, deixei a
relíquia na tenda... Dez brutos alanos, armados até às orelhas, aproximaram-se
de Roger. Inúmeros corpos deceptados, crânios trepanados, mesas e cadeiras
viradas do avesso, carne de cordeiro assada misturada com vísceras humanas,
vinho com sangue almogávar..., um quadro vivo de brutal carnificina acabava de
ser transposto por aquela dezena de algozes sedentos de morte. Maria... O
pensamento de Roger de Flor fundiu-se na neblina que guarda os umbrais da
eternidade. O fatídico presságio da esposa encontrava-se, agora, com as lâminas
das lanças e espadas dos rudes alanos». In Alberto S. Santos, A Profecia de
Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-103-6.
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