jdact
e wikipedia
«(…)
Depois de Hoffmann, Poe foi o autor que mais teve influência sobre o fantástico
europeu, e a tradução de Baudelaire devia funcionar como o manifesto de uma nova
atitude do gosto literário. Entretanto, os efeitos macabros e malditos de sua obra
foram recebidos mais facilmente por seus descendentes do que sua lucidez racional,
que é o traço distintivo mais importante desse autor. Falei antes de sua descendência
europeia porque em seu país a figura de Poe não parecia tão emblemática a ponto
de ele ser identificado com um género literário específico. Ao lado dele,
aliás, um pouco antes dele, estava outro grande americano, que havia levado o
conto fantástico a uma intensidade extraordinária: Nathaniel Hawthorne.
Entre
os autores representados nesta antologia, Hawthorne é certamente aquele que consegue
ir mais fundo no campo moral e religioso, tanto no drama da consciência individual
quanto na representação sem disfarces de um mundo forjado por uma religiosidade
extrema como a da sociedade puritana. Muitos de seus contos são obras-primas
(tanto do fantástico visionário, como o sabá de O jovem Goodman Brown, quanto
do fantástico introspectivo, como em Egoísmo ou a serpente no peito), mas não
todos: quando ele se afasta dos cenários americanos (como na célebre Filha de
Rapaccini), a sua invenção pode resultar em efeitos previsíveis. Mas nos
melhores casos as suas alegorias morais, sempre baseadas na presença indelével
do pecado no coração do homem, têm uma força na visualização do drama interior
que só será alcançada em nosso século, com Franz Kafka. (Há inclusive uma antecipação
do Castelo kafkiano num dos melhores e mais angustiados contos de Hawthorne: My
Kinsman Major Molineux).
Mas
é preciso dizer que antes mesmo de Hawthorne e Poe o fantástico na literatura dos
Estados Unidos já possuía uma tradição própria e um autor clássico: Washington
Irving. E não nos esqueçamos de um conto emblemático como Peter Rugg, the
missing man, de William Austin (1824). Uma misteriosa condenação divina compele
um homem a correr numa carroça em companhia da filha, sem nunca poder parar,
perseguido por um furacão através da imensa geografia do continente; uma
narrativa que exprime com elementar evidência os principais pontos do nascente
mito americano: potência da natureza, predestinação individual, tensão aventurosa.
Em
suma, a tradição do fantástico herdada por Poe e transmitida aos seus
descendentes, que são na maioria epígonos e maneiristas (ainda que exuberantes nas
cores da época, como Ambrose Bierce), já estava madura. Até que, com Henry
James, nos encontraremos diante de uma nova virada. Na França, o Poe tornado
francês por intermédio de Baudelaire não tarda a fazer escola. O mais
interessante desses seus continuadores no âmbito específico do conto é Villiers
de L'Isle Adam, que em Véra nos dá uma eficaz mise-en-scène do tema do amor que
continua para além da morte; além disso, A tortura com a esperança é um dos
exemplos mais perfeitos de fantástico puramente mental. (Em suas antologias do
fantástico, Roger Callois escolhe Véra, Borges, A tortura com a esperança, óptimas
escolhas, tanto a primeira como, sobretudo, a segunda. Se proponho uma terceira
narrativa, é somente para não repetir escolhas alheias.)
No
final do século, é particularmente na Inglaterra que se abrem as estradas que serão
percorridas pelo fantástico do nosso tempo. Na Inglaterra caracteriza-se um tipo
de escritor refinado que adora travestir-se de escritor popular, operação bem realizada
porque ele não o faz com condescendência, mas com diversão e empenho profissional,
e isso só é possível quando se sabe que sem a técnica do ofício não há sabedoria
artística que preste. R. L. Stevenson é o exemplo mais feliz dessa disposição
de ânimo; mas ao lado dele devemos considerar dois casos extraordinários de
genialidade inventiva e precisão artesanal: Kipling e Wells. O fantástico dos
contos indianos de Kipling é exótico não no sentido estetizante e decadentista,
mas na medida em que nasce do contraste entre o mundo religioso, moral e social
da Índia e o mundo inglês. O sobrenatural é muito frequentemente uma presença
invisível, ainda que aterrorizante, como na Marca da besta; às vezes o cenário
do trabalho quotidiano, como o que aparece em Os construtores de pontes, se
rompe, e as antigas divindades da mitologia hindu se revelam numa aparição
visionária. Kipling também escreveu muitos contos fantásticos ambientados na
Inglaterra, onde o sobrenatural é quase sempre invisível (como em They) e predomina
a angústia da morte». Organização de Italo Calvino, Contos fantásticos do
século XIX, O fantástico visionário e o fantástico quotidiano, 1983, vários
tradutores, Companhia das Letras, São Paulo, 2004, ISBN 978-853-590-502-1.
Cortesia
da CdasLetras/JDACT