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«(…)
Triss fez que sim, lentamente. Não tinha mais ninguém rindo dentro da cabeça
dela. Havia ainda um delicado farfalhar, mas bastou olhar para o outro lado do
cómodo, para a janela oposta, para facilmente deduzir quem era o culpado. Um
galho mais baixo estava prensado no batente, pesado devido aos montes de maçãs
verdes, suas folhas afagando o vidro toda vez que o vento o chacoalhava. A luz
entrava entrecortada, vacilante, partida em mosaico pela folhagem. O cómodo em
si estava tão verde quanto as folhas. Coberta verde sobre a cama, paredes
verdes cheias de pequenos diamantes cor de creme, toalhas quadradas de um verde
espalhafatoso sobre as mesas de madeira escura. Não havia gás aceso; as
lamparinas brancas redondas da parede não mostravam sinal de vida. E foi
somente então que, ao olhar em redor com mais minúcia, que a garota percebeu
que havia uma quinta pessoa no quarto, espreitando junto à porta. Era outra menina,
mais nova que Triss, cabelo escuro frisado, quase uma versão em miniatura da
mãe. Contudo, havia algo de muito especial em seus olhos, frios e rígidos como
os de um sapo. Ela segurava a maçaneta da porta como se quisesse girá-la, e o
maxilar estreito não parava no lugar, fazendo ranger os dentes. A mãe olhou
para trás, para acompanhar o olhar de Triss. Ah, olha, a Penny veio ver-te. Pobre
Pen… Não comeu quase nada desde que ficaste doente, de tanta preocupação.
Entre, Pen, vem aqui sentar perto da sua irmã… Não!, gritou Penny, tão
subitamente que todos deram um pulo de susto. Ela está fingindo! Não veem? É fingimento!
Ninguém vê a diferença? O olhar da menina estava fixo no rosto de Triss com uma
expressão de estilhaçar rocha. Pen. Havia um tom de admoestação na voz do pai. Entre
aqui agora e… NÃO! Pen parecia estar louca, desesperada, os olhos escancarados
como se estivesse pronta para morder alguém. Saiu às pressas porta fora. Os
passos rápidos foram ecoando, sumindo na distância. Não vá atrás, sugeriu o pai
gentilmente à mãe, que começara a levantar-se. Assim você a recompensa dando
atenção, lembra do que disseram? A mãe suspirou, cansada, mas tornou a
sentar-se, obediente. Notou que Triss apoiara-se nos cotovelos, quase tampando
os ouvidos, fitando a porta aberta. Não liga p’ra ela, disse gentilmente,
acariciando a mão da filha. Sabe como ela é. Sei mesmo? Sei como ela é? É a
minha irmã, Penny. Pen. Tem nove anos. Costumava ter amigdalite. O primeiro dente
de leite caiu quando ela foi morder alguém. Teve um periquito, mas esqueceu de limpar
a gaiola, e ele morreu. Ela mente. Ela rouba. Ela grita e atira coisas. E…, e
ela me odeia. Odeia de verdade. Posso ver nos olhos dela. E não sei por quê. Por
um momento, a mãe ficou ao lado da cama e fez Triss ajudá-la a cortar moldes
para um vestido com uma enorme tesoura de cabo de casco de tartaruga que
retirara de uma caixa de costura que insistia em trazer nas férias. As tesouras
deslizavam com um barulhinho baixo e gutural, como se apreciassem cada centímetro.
Triss sabia que adorava aplicar padrões ao tecido, cortá-lo para então ver os pedaços
de fazenda lentamente comporem uma forma, eriçados de alfinete e guarnecidos de
bainhas de beirada irregular. Os modelos vinham com fotos de moças em tom
pastel, algumas de casaco comprido e chapéus de belo formato, outras com
turbantes e vestidos longos que caíam rectos feito pendões. Todas jaziam
lânguidas, como se fossem bocejar do modo mais elegante possível. Sabia que era
um regalo poder ajudar a mãe na costura. Era a diversão usual, notara, para
quando ficava doente. Naquele dia, contudo, as suas mãos estavam bobas e
estabanadas. As grandes tesouras pareciam impossivelmente pesadas e vacilavam
na mão dela, quase como se dançassem, rebeldes, entre os seus dedos. Depois da
segunda vez em que quase pegara os próprios nós dos dedos entre as lâminas. Ainda
não está muito bem, não é, querida? Por que não lê uma revistinha? Havia cópias
intactas de Sunbeam e Golden Penny na mesa de cabeceira. Entretanto, Triss não
conseguiu concentrar-se nas páginas à sua frente. Ficara doente outras vezes,
sabia disso. Muitas, muitas vezes. Porém sabia que jamais acordara com essa
terrível vagueza. O que tem de errado com as minhas mãos? O que tem de errado
com a minha cabeça? Ela queria gritar alto. Mãe, me ajuda, por favor, me ajuda,
está tudo esquisito, tudo errado, e parece que a minha cabeça é feita de
pedaços e alguns estão faltando…» In Frances Hardinge, Canção do Cuco, 2014,
Novo Século Editora, Le Livros, 2015, EISBN 978-854-280-633-5.
Cortesia
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