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e wikipedia
«(…)
Ao lado de Jean, a semente germinou, secreta como seiva, perante as extremas
injustiças maquinadas pelas elites mundiais e diariamente relatadas. No fundo,
a minha história é fruto de um puzzle
cujas peças são acontecimentos aleatórios dos dias vividos. Não, não venho aqui
contar-vos os factos, palavra que perdeu a virgindade primária. Venho partilhar
a minha percepção do mundo, dos acasos que o regram ou desregram e a forma como
tudo isso fez de mim aquilo que fui, e sobretudo aquilo que sou, neste preciso
instante em que escrevo, uma velha, um ser humano em fim de vida, num mundo em
permanente estado de urgência. Tudo começaria com este correio electrónico:
Querida amiga, deixa-me falar-te do meu desespero.
A terra está cheia de demónios, mas que são, afinal, os mesmos que povoam o
nosso próprio inferno. Sempre detestei a mer… da violência e a mer… da
guerra. Desculpa a minha fúria. Estamos todos metidos no mesmo atoleiro. Este
mundo é a nossa pocilga, Laura. Se a guerra existe é porque há quem a sirva. Os
soldados servem os generais que servem os governos que servem os ditadores que
se servem de todos nós. A guerra é o trabalho dos homens-soldados. São eles a
engrenagem da máquina infernal. É assim que eles governam as suas vidas,
alimentam as suas famílias. Em troca de dinheiro, esses pobres tipos servem os senhores
da guerra que arrotam de proveito e ejaculam de gozo o bem que lhes sabe todo o
mal dos outros. É claro que não me iludo. Mesmo se não houvesse
homens-soldados, nem homens-generais haveria sempre guerra. Mas, o que não
posso aceitar é que haja Estados a organizar matanças, a escravizar pessoas e a
fomentar ódios. Chego a acreditar que os que detêm o poder estão pactuados com
o maléfico. Achas que será possível, um dia, alterar este estado de coisas? A
fúria e o desespero não são bons aliados, eu sei. Mas gostava de compreender o
que faz de nós carrascos uns dos outros. O mal, Laura, conjuga-se na primeira pessoa
e dissimula-se no colectivo. No fundo, somos todos malditos. O mal como
estratégia de poder é um trágico absurdo, é o que te digo. Não tenhas dúvidas,
este é o tempo do maligno, a hora do caos, porque o caminho foi assim preparado
por cada um de nós. O inferno é aqui. O diabo existe, Laura, sou eu, és tu, é a
tua irmã ou o teu vizinho. Combatê-lo é combater a vida e exterminar tudo ou
apenas uma parte, não sei. Extingui-lo exige uma solução final, disso estou
certo. É preciso um homem novo, uma raça superior se queremos evitar a nossa
perda. Poder-se-á combater o mal pelo mal, afinal, é a dose que faz o veneno. Haverá
para isso alguma fórmula? Fico com as minhas cogitações. Espero ansiosamente
pelo encontro de amanhã, o momento em que te conhecerei, enfim. Sinto que temos
muitas coisas para partilhar, querida Laura. Sempre teu, Jean.
O
encontro fora previsto para uma hora tardia. Meia-noite. O momento em que um
dia termina e outro começa.Se o mundo teve uma hora precisa de concepção foi
decerto essa. Escolhi o local ao acaso, ou talvez não. Seria melhor um sítio
com algumas pessoas em redor que um antro deserto ou um bar perdido num bairro
sujo de Paris. Na verdade, as decisões tomadas nesses últimos tempos não
obedeciam a nenhuma regra. O passado surgia-me com profunda nostalgia e uma
nítida sensação de perda. Perda de inocência, perda de coisas e de pessoas que
amei, perda de tempo e de vida. Com o andar dos anos, as pessoas fundem-se com
as coisas e deixamos de saber se amamos as pessoas pelas coisas ou o inverso.
Não há dúvida que podemos amar as coisas e as pessoas em simultâneo. Tanto faz.
O mundo tornou-se demasiado complexo e incompreensível à força de querer
compreendê-lo.
Tudo
querer saber é pura intoxicação. O excesso de informação deforma e pode induzir
a um estado de desânimo altamente explosivo ou vegetativo depende, talvez, da
fase da Lua. No dia em que decidi responder ao anúncio de Jean, morria de
tédio. O tédio das grandes cidades, que tem o poder de reduzir qualquer um a
uma existência bruta e insignificante, como um banco de jardim ou um automóvel
estacionado no parque do Carrefour. Nem a última filha da putice engendrada
contra mim, pelo maralhal da empresa, que outrora me teria atirado para o divã
do psiquiatra mais próximo, me estimulava os neurónios. Nada. Nem ódio, nem
cólera, nem desejo, nem nada. Devo dizer-vos que faço parte de uma geração que
tudo conquista e nada tem.
O
prazer, essa felicidade imediata que consome o tempo, o dinheiro e a alma, só
cria dependentes. E o que não estamos nós dispostos a fazer pelo prazer! Sou de
um tempo em que a felicidade é uma meta, um objectivo de vida, sem no entanto
saber que aspecto tem, ou como e onde a encontrar». ». In Ana Miranda, O Diabo é um
Homem Bom, Editora Chiado, colecção Viagens na Ficção, 2012, ISBN
978-989-697-552-4.
Cortesia de
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