segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Stonehenge. Bernard Cornwell. «Lengar! Saban agitava-se nas aveleiras. Deixa-me ir buscar o pai. Calado! Lengar retirara uma das suas flechas de penas negras da aljava e colocara-a no arco curto»


Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O forasteiro inclinou-se para diante e com dificuldade pegou nas flechas que tinham caído da aljava, formando com elas um pequeno feixe que segurou como uma faca, como se se quisesse defender. Traz-me um curandeiro implorou na sua língua. Os trovões rugiam a ocidente e as folhas das aveleiras estremeceram quando uma rajada de vento frio anunciou a tempestade. O forasteiro olhou de novo Lengar nos olhos e não viu neles piedade. Apenas a satisfação que Lengar encontrava na morte. Não, disse. Não, por favor. Lengar soltou a flecha. Estava só a cinco passos do forasteiro e a pequena seta atingiu o alvo com força doentia, empurrando o homem para o lado. A flecha enterrou-se profundamente, deixando apenas a ver-se sobre o peito do forasteiro um palmo da sua haste, enfeitada com penas pretas e brancas. Saban pensou que o Fronteiriço estava morto porque não se mexeu durante muito tempo, mas depois o feixe de setas que fizera cuidadosamente caiu-lhe da mão, quando se esforçou por se endireitar. Por favor disse em voz baixa.
Lengar! Saban agitava-se nas aveleiras. Deixa-me ir buscar o pai. Calado! Lengar retirara uma das suas flechas de penas negras da aljava e colocara-a no arco curto. Caminhou na direção de Saban, apontando-lhe o arco, sorrindo ao ver o terror no rosto do meio-irmão. O forasteiro olhava também para Saban, vendo um rapaz alto e bonito, com cabelo negro emaranhado, olhos ansiosos. Sannas implorou o forasteiro a Saban, leva-me a Sannas. Sannas não vive aqui disse Saban, entendendo apenas o nome da feiticeira. Nós vivemos aqui anunciou Lengar, apontando agora uma flecha sua ao forasteiro. És um Fronteiriço, dos que roubam o nosso gado, escravizam as nossas mulheres e enganam os nossos mercadores. Soltou a segunda flecha que, como a primeira, bateu no peito do forasteiro, desta vez nas costelas do lado direito. Mais uma vez o homem tombou para o lado e de novo se esforçou por se endireitar como se o seu espírito recusasse deixar-lhe o corpo ferido.
Posso dar-te poder disse, enquanto um fio de sangue borbulhante lhe escorria da boca para a barba curta. Poder murmurou. Mas Lengar não entendia a língua do homem. Disparara duas flechas e mesmo assim o homem recusava-se a morrer, de modo que pegou no seu arco, colocou uma flecha na corda e enfrentou o forasteiro. Esticou para trás a arma enorme. O forasteiro abanou a cabeça, mas já conhecia o seu destino; olhou então Lengar nos olhos para lhe mostrar que não tinha medo de morrer. Amaldiçoou o seu assassino, embora duvidasse que os deuses o escutassem, pois era ladrão e fugitivo. Lengar soltou a corda e a flecha de penas pretas enfiou-se no coração do forasteiro. Deve ter morrido imediatamente, porém tentara ainda erguer o corpo, como se quisesse desviar-se da seta de sílex; depois caiu, estremeceu enquanto lhe batia o coração e ficou imóvel. Lengar cuspiu na mão direita, esfregando depois o cuspo no interior do pulso esquerdo, onde o arco do forasteiro lhe tinha ferido a pele; ao olhar para o meio-irmão, Saban percebeu a razão por que o forasteiro usava a fita de pedra no braço. Lengar executou uns passos, celebrando a morte, mas estava nervoso. Não tinha a certeza se o homem estava realmente morto, pois aproximou-se do corpo com todo o cuidado, tocando-lhe com a extremidade de osso do arco, preparado para saltar para trás, se o corpo voltasse à vida e se atirasse a ele, mas o forasteiro não se mexeu.
Lengar aproximou-se de novo para arrancar a bolsa da mão do forasteiro já morto, afastando-a do corpo. Olhou por uns momentos o rosto acinzentado do cadáver e depois, confiante de que o espírito do homem tinha de facto partido, arrancou o cordão que atava a bolsa. Espreitou para dentro dela, ficou imóvel um instante e depois gritou de alegria. Tinham-lhe dado o poder. Saban, aterrorizado pelo grito do irmão, recuou, mas em seguida avançou de novo, enquanto Lengar esvaziava o conteúdo da bolsa na relva, junto à caveira esbranquiçada do boi. Para Saban, parecia que um raio de sol se tinha escapado dela. Havia dezenas de pequenos ornamentos de ouro, em forma de losango, cada um deles do tamanho da unha de um polegar e quatro placas grandes, também com a forma de losangos, com as dimensões de uma mão. Os losangos, grandes e pequenos, tinham pequenos orifícios feitos nos vértices, de modo a poderem ser metidos num tendão ou cosidos numa peça de vestuário; todos eles eram feitos de folhas de ouro muito finas, com linhas rectas gravadas, embora o padrão nada significasse para Lengar que arrancou a Saban um dos mais pequenos, que este se atrevera a apanhar da relva. Lengar juntou-os todos, grandes e pequenos, num monte. Sabes o que é isto? perguntou ao irmão mais novo, apontando para lá. Ouro respondeu Saban». In Bernard Cornwell, Stonehenge, 1999, Editora HarperCollins, 2008, Editora Record, tradutor Alves Calado, ISBN 978-850-107-985-5.

Cortesia de ERecord/JDACT