jdact
Londres.
Maio de 1537
«(…)
Bem sei que és capaz de fazer seja o que for, Margaret, retorquiu. O meu pai também
me apertou nos braços. Tinha passado o dia a praticar desporto, e ainda me lembro
de como cheirava a suor, a terra e a erva seca e esmagada. Senti-me muito aliviada
e muito feliz. A carroça de Londres estremeceu e sacolejou, atirando-me para cima
da palha. O meu sonho terminara. Tínhamos passado as muralhas da cidade e tomado
por uma rua lateral. As rodas da carroça estavam atoladas no lodo. Os cavalos relinchavam,
o carroceiro praguejava, os turbulentos homens passaram para trás da carroça. Não
faz mal, disse-me a mulher. Estamos quase em Smithfield. Segui o grupo até ao fim
da rua. Virámos para uma outra, ladeada de tabernas. Ia dar a uma enorme zona
aberta e plana, a transbordar de gente que aguardava a execução do dia. Havia centenas
de espectadores: homens e mulheres, marinheiros e costureiras, até crianças. Uma
família passou por mim, a mãe transportando um cesto de pão, o pai com um rapazinho
às cavalitas. Um fedor inesperado inundou-me o nariz, a garganta e os pulmões. Os
meus olhos lacrimejaram. Era o pior cheiro que jamais sentira em Londres. Soltei
um grito e agarrei a garganta, que me ardia loucamente. São os matadouros, a oriente,
explicou a mulher que viera na carroça comigo. Quando se apanha o vento, o cheiro
do sangue e das vísceras torna-se mesmo desagradável. Pegou-me no cotovelo. Vê-se
que não estais habituada a Smithfield. Vinde comigo, não vos afasteis. Abanei a
cabeça, pestanejando. Não testemunharia o fim da vida de Margaret com uma
criatura sem coração, como aquela. Ela encolheu os ombros e desapareceu na multidão.
Fiquei sozinha. Estava a tremer. Meti de novo a mão no bolso e tirei a carta
que Margaret me escrevera poucos dias antes de rebentar a Rebelião do Norte, à
qual chamamos a Peregrinação da Graça. Desdobrei o pequeno triângulo de papel bege
e admirei, como sempre, a sua caligrafia inclinada e delicada.
Minha
muito querida Joanna: Ouvi do meu irmão que tencionas entrar na Ordem
Dominicana, no Priorado de Dartford, e professar para te tornares noiva de Cristo.
Admiro-te profundamente pela tua escolha de uma vida santa. Acendi velas em tua
honra na missa da manhã, querida prima. […] Todas as noites digo três orações.
Peço a Deus que proteja os nossos mosteiros. Oro pela salvação da alma do meu pai.
E rezo para que, um dia, volte a ver-te, Joanna, e que tu me abraces e perdoes. Escrito no meu solar de Lastingham em York,
na última quinta-feira de Setembro. A tua prima e amiga para a eternidade Margaret
Bulmer
Guardei
de novo a carta, puxei o capuz para a cabeça, de modo a que nem um fio de
cabelo ficasse à vista, e entrei em Smithfield.
Parei
na orla da clareira atulhada de gente ansiosa pelo divertimento de ver Margaret
morrer queimada. Lembrei-me de uma coisa que o meu pai dizia acerca de Smithfield:
era o sítio onde a corte dos Plantagenetas organizava as mais magníficas justas,
Joanna. Foi por isso que o escolheram. Não muito longe do palácio havia um campo
raso (smooth field). E transformou-se em Smithfield. O meu pai não era um homem
dado às belas palavras. Mas sabia descrever uma justa. Tinha sido campeão, na sua
juventude, um dos melhores cavaleiros do reino. Isso fora antes da execução do meu
tio, o duque, por alta traição, quando eu tinha dez anos, e de os meus pais terem
sido banidos da corte. Antes da queda dos Stafford. Já tinham passado muitos anos
desde a última justa em que ele participara. Mas as recordações continuavam bem
vivas. Eu fechava os olhos e ficava a ouvi-lo contar as histórias. Tinha a sensação
de que era eu quem cavalgava pela liça, dividida em duas por uma barreira baixa,
de madeira. A armadura prateada a brilhar ao sol. Um escudo na mão esquerda, uma
lança na direita. Ao longe, um adversário galopa também, cada vez mais perto...,
mais perto..., até os dois cavaleiros estarem a poucos metros um do outro e as lanças
baixarem com estrondo. Quando imaginava esse momento de contacto, em que um homem
podia morrer se a lança penetrasse na armadura, estremecia. O meu pai sorria. Aquele
sorriso breve era o de um rapaz, apesar de o seu abundante cabelo castanho já
apresentar alguns fios grisalhos». In Nancy Bilyeau, A Coroa, 2012, Editorial
Presença, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-234-862-1.
Cortesia de
EPresença/JDACT