sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

A Coroa. Nancy Bilyeau. «A irmã Joan e a irmã Agatha inclinaram-se diante do altar e ocuparam os seus lugares. Segui-lhes o exemplo e dirigi-me para as cadeiras das noviças, à frente»

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Londres. Maio de 1537
«(…) Há muito tempo que não via esse sorriso. Quando lhe disse, no ano passado, que queria tornar-me noviça e professar, ele discutiu comigo e tentou fazer-me mudar de opinião, mas acabou por deixar de insistir. Viu que eu era sincera no meu desejo de me dedicar a uma vida mais elevada, longe do clamor das vozes humanas e do toque dos homens. Escreveu as cartas necessárias e, com alguma dificuldade, pagou o meu dote ao priorado. Fê-lo pela minha felicidade, pois não conhecia outro modo de ma proporcionar. E, durante alguns meses, fui feliz em Dartford. Encontrei segurança e um objectivo na vida contemplativa, a graça pela qual ansiava, isolada do egoísmo e da vaidade, da pompa irracional do mundo. Mas era uma felicidade frágil. Tinha optado por uma vida religiosa que, não só estava em declínio, cada vez menos pessoas entravam em mosteiros, como se encontrava sob um ataque vigoroso. O nosso rei rompera com o Santo Padre. Ao longo dos últimos dois anos, as abadias e priorados mais pequenos de Inglaterra tinham sido encerrados, os seus frades e freiras, expulsos. A prioresa Elizabeth garantia-nos que as casas maiores, como a nossa, não seriam atingidas, mas o medo de uma nova série de encerramentos forçados assombrava os corredores de pedra, o jardim do claustro, até os dormitórios de Dartford. Fora apenas há uma semana, quando me dirigia para o ofício de Vésperas, que ouvira o nome dela ser sussurrado pela primeira vez, um pouco mais à frente, no corredor sul. A mulher que estava entre os dirigentes da segunda Rebelião do Norte, lady Margaret Bulmer... Exclamei: de quem estais a falar? As duas irmãs que caminhavam lado a lado estacaram e viraram-se para trás. Uma noviça nunca devia dirigir-se às suas superioras naquele tom. Perdoai-me, irmã Joan e irmã Agatha. Baixei a cabeça, cruzei modestamente as mãos, depois levantei os olhos para os seus rostos. A irmã Joan, a circator, responsável pela aplicação das regras, fitava-me com uma expressão de desaprovação fria. Mas a irmã Agatha, a mestra de noviças, não resistiu a partilhar a sua bisbilhotice. Os últimos dirigentes rebeldes foram levados para Londres e julgados em Westminster, contou num sussurro precipitado. Todos foram considerados culpados. Os homens serão enforcados, incluindo sir John Bulmer, mas a sua esposa, uma lady, será queimada viva em Smithfield. São as ordens do rei.
Cambaleei. Tive de estender a mão e apoiar-me à pedra húmida da parede para não cair. Sim, é terrível, não é?, cacarejou a irmã Agatha. Mas os olhos argutos da irmã Joan estavam cravados em mim: irmã Joanna, conhecestes lady Bulmer antes de virdes para Dartford?, inquiriu. Não, irmã. E pronto, já tinha cometido um pecado grave. A irmã Agatha continuou: sempre me perguntei o que lhes acontece..., depois. A família de lady Bulmer terá permissão para levar o pobre corpo e enterrá-lo, embora o crime seja de alta traição? A irmã Joan lançou-lhe um olhar severo: tais assuntos não nos dizem respeito. Tenho a certeza de que a família da senhora tem meios para subornar os guardas, se for necessário. Nós ocupamo-nos das almas, não da carne mortal. Tínhamos chegado à igreja. A irmã Joan e a irmã Agatha inclinaram-se diante do altar e ocuparam os seus lugares. Segui-lhes o exemplo e dirigi-me para as cadeiras das noviças, à frente. Sendo a mais nova, sentava-me ao lado do degrau do coro. Acompanhei os cânticos, dei todas as respostas correctas durante a celebração do ofício. Mas, enquanto o fazia, ia alinhavando mentalmente um plano. Sabia que os nossos aterrorizados parentes Stafford não quereriam ter nada a ver com Margaret ou com o seu enterro. Não podia suportar a ideia de ela morrer, só e assustada, sem a presença e as orações de um ente querido para lhe aliviar o sofrimento, e de saber o seu pobre cadáver abandonado ao esquecimento. Deus queria que eu assistisse como testemunha, estava certa disso.
Sairia do Priorado de Dartford e iria até Londres, até Smithfield. Mas, como a ordem dominicana observava regras de clausura rigorosas, tanto para as noviças como para as freiras, teria de ir sem autorização. A ideia assustava-me, sim. As consequências de quebrar a clausura eram tão sérias que a única coisa mais grave era a violação dos nossos votos de castidade. Passei os dois dias seguintes a vacilar, insegura acerca da minha decisão. Procurei orientação nas minhas orações. No ofício de Matinas, à meia-noite, fui iluminada. Habitualmente, as noviças de Dartford recolhiam-se às nove horas, com instruções para descansarem, mas, nessa noite, não preguei olho, de tão perturbada que estava. Entrei na igreja com as outras e, entre o Pai Nosso e a Avé-maria, tive uma inspiração. Todas as minhas dúvidas, medos e preocupações desapareceram, como se estivesse numa queda de água e fosse purificada pela mais límpida das torrentes. Iria a Smithfield. Tudo correria bem. Ergui os braços e virei as palmas das mãos para o altar, com as faces húmidas de gratidão. Enquanto subíamos as escadas, de regresso aos dormitórios para mais algumas horas de sono até aos Laudes, a irmã Christina, a noviça mais antiga, deu-me uma cotovelada. Encontrastes a Verdade Divina?, sussurrou. Parecia. Talvez, repliquei. Rezo para receber a mesma bênção, disse ela, num tom veemente. Era notavelmente devota e, por vezes, usava um cilício por baixo do seu hábito de noviça, embora já tivesse sido repreendida por isso. As noviças eram desencorajadas de procurar a mortificação da carne. Ainda não estávamos preparadas. A irmã Winifred, a outra noviça, que professara três meses antes de mim, apertou-me o braço. Fico feliz par vós, murmurou, na sua voz doce e melodiosa». In Nancy Bilyeau, A Coroa, 2012, Editorial Presença, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-234-862-1.

Cortesia de EPresença/JDACT