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«(…)
Não sei nada disso. Acha que eles se apaixonaram? Não posso falar por ele. Só
sei que aquela rapariga não faria nada para magoá-la. O que hei-de fazer? O que
lhe hei-de dizer? E se ele continuar a confundir-me com ela? Diga-lhe a
verdade. Diga-lhe que não é a Rosa. Diga-lhe que estamos todos muito
preocupados porque sabe-se lá onde a pobre rapariga se encontra agora.
Londres.
1840
Durante
os quatro meses que Henry ficou em nossa casa, vi-o chorar pela mãe uma vez. Um
dia, depois de ele ir para a escola, chegou um embrulho, com o endereço escrito
numa letra incerta, que, como viemos a verificar, era da tia que acolhera o
pai. Numa carta anexa, comunicava que viera ao Sul com o objectivo de separar
os pertences da defunta para que, dentro de pouco tempo, pai e filho pudessem
regressar a casa e começar de novo. Encontrara os objectos que enviava e que a
mãe de Henry deixara ao filho como recordação. Os meus pais falaram do assunto
ao pequeno-almoço. Não podemos interferir, disse a mãe. O Henry já tem idade para
aguentar este embate. É quase um homem. Precisamente quando o rapaz estava a
progredir tão bem, chegou isto, disse o pai. Na minha opinião, era preferível
guardarmos estas coisas. Mas ele tem de ficar com alguma coisa da pobre Eppie.
Tem a recordação dela. Isso deve ser suficiente.
Durante
todo o dia, mantive-me à distância do embrulho, sempre que passava pelo
corredor, e não falei dele a Henry quando fui ao seu encontro no portão do jardim,
porque queria prolongar o mais possível a sua boa disposição. Nessa época, em
geral levávamos uma hora ou mais a chegar a casa. Se o tempo estava quente,
deitávamo-nos debaixo do cedro e deixávamo-nos ficar ali, com as agulhas caídas
a picarem-nos as costas, a observar os ramos complicados, ou então ele
encostava-se ao tronco e lia um livro de anatomia que um professor lhe
emprestara. Eu não estava autorizada a espreitá-lo, porque Henry dizia que o
conteúdo não era adequado a uma menina e eu optava por me encostar às suas
costelas ossudas e ouvir o bater do seu coração. Uma vez, quando me disseram
que fosse apanhar framboesas para o jantar, enchemos ambos as nossas taças até
eu ficar tonta com o cheiro a feno e a açúcar e ter de me sentar à sombra, enquanto
ele prosseguia a sua tarefa e de vez em quando me enfiava, com os dedos
manchados, frutos na boca. Quando se aproximou a hora do jantar, fomos para
casa, ofuscados pelo ambiente exterior, despejámos as taças em cima da mesa da
cozinha e subimos as escadas das traseiras que iam dar ao patamar de acesso aos
nossos quartos. Ele puxou-me a trança Vai lavar a cara, Mariella. Desgraças o
nome da família.
Na
tarde em que chegou o embrulho, dei-lhe a mão e acompanhei-o até ao corredor.
Assim que Henry pegou nele, aconteceu precisamente o que eu receava; ele
refugiou-se em si mesmo, foi para cima e fechou-se no quarto. Não desceu para
jantar. Mais tarde, a mãe subiu com um tabuleiro e meia hora depois mandou-me
buscá-lo. A porta do quarto dele ficara aberta e o aposento cheirava a carne
cozida porque Henry não tocara na comida. Estava sentado em cima da cama, com o
conteúdo do embrulho espalhado à sua volta. Peguei no tabuleiro e pu-lo lá fora,
no corredor. Em seguida, fechei a porta e aproximei-me da cama, onde fiquei com
as mãos atrás das costas, à espera de que ele desse pela minha presença. Henry
não era ainda um rapaz muito bem-parecido; demasiado magro, a sua pele, embora
mais bronzeada do que quando chegara, continuava vulnerável a manchas, e o
cabelo era escorrido. Mas eu considerava-o belo devido ao seu olhar grave e
perspicaz, e lamentava a luz que em geral lhe iluminava o rosto sempre que me
via. Pouco depois, aproximei-me da cama, pousei-lhe a mão no ombro e inclinei o
pescoço de tal maneira que fiquei com a cara quase virada ao contrário por
baixo da cabeça dele. Fitei-o. Não houve reacção alguma. Posso ver o que estava
no embrulho?, perguntei. Nada. O sofrimento dele era tão palpável que percebi
que se impunham medidas drásticas. Sentei-me no seu colo desconfortável e
passei-lhe as mãos à volta do pescoço. Mostra-me, disse eu». In
Katharine Mc Mahon, A Rosa de Sebastopol, 2007, tradução de Filomena Duarte,
Casa das Letras, 2010, ISBN 978-972-461-938-5.
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