Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Ah, meu Deus! Ah, Céus! Decididamente, o dia não estava se desenrolando da
forma que ela tinha imaginado. Não estava à espera de que o Dominó fosse um
cavalheiro. Não esperava certamente um homem alto e atraente com um sorriso tão
arrebatador. Não tinha certeza do que tinha imaginado. Só sabia que não era
aquilo. Ele não parecia nada perturbado pela presença dela em lugar do seu pai,
nem pela declaração de que tinha uma pistola. Continuou com uma atitude amável
enquanto se aquecia à lareira. Não parava de cintilar com aqueles sorrisos
breves, deslumbrantes, de quem quer tranquilizar. E que não a deixavam nada
tranquila. Pelo contrário, pareciam muito perigosos. Talvez fosse porque a
luminosidade do fogo o transformava num conjunto de ângulos fechados, ou os
seus olhos parecerem muito mais intensos e alertas do que sua postura. Podia
ser pela riqueza, evidente pelo corte e pelo tecido da capa de montar
cinza-escura que tirara, e na qualidade das botas altas e da confortável pele
de gamo que cobriam as pernas. Até o cabelo escuro era de rico, com aquele
corte esvoaçante, curto e solto, que em vez de arrepiar melhorava com a humidade
e o vento. Mas a aparência dele ainda era o de menos. Era impossível ignorar a
alteração que a chegada dele provocara na atmosfera do quarto, como se emanasse
raios de poder minúsculos e invisíveis. Meu senhor, parece que devemos avançar
com o propósito da reunião. Com este tempo, não há pressa. Nem você nem eu vamos
a lugar algum tão cedo. Desejou não ter permitido que se aproximasse tanto. Ele
não estava nem a dois metros de distância e era imponente, muito mais alto do
que ela. Não conseguia ignorar o seu tamanho nem o quanto ele a fazia se sentir
pequena e vulnerável, e em maior desvantagem do que era justo. Ainda assim,
gostaria de tratar do assunto rapidamente. Ele começou a formar um daqueles
sorrisos, mas um peculiar, que reflectiu algum pensamento que passou pela
cabeça. Quem é a senhora?, perguntou ele. Isso é importante? Pode ser muito
importante. Pelo que sei, você pensava que eu queria me encontrar com um
Kelmsleigh diferente, e sairá daqui com factos que não deveria possuir. Para um
homem inocente e insuspeito, isso pode ser danoso. Eu diria que isso é
improvável. A voz soou aguda ao seus próprios ouvidos. Ele falava como se a
informação que tinha não fossem boas notícias. Contudo, se receia fazer
revelações a quem não tem a ver com o assunto, identificarei o Kelmsleigh em que
estou interessada. Era funcionário do Gabinete do Material de Guerra. A minha
esperança é que a sua informação esteja relacionada com esse cargo. Dito isso,
o sorriso dele mostrou-se menos amigável. Um tanto predatório, para dizer a
verdade. Podia ser da luz crua, claro, mas... Para seu desgosto, ele avançou em
sua direcção, olhando fixamente o seu rosto. Insisto que fique onde está. Detestou
que a exigência tivesse saído em tom de lamúria. Ele continuou a se aproximar. Pôs-se
em pé num salto. O xaile caiu ao chão. Não apontou a pistola mas segurou-a com
força. Não se aproxime mais. Eu sei como isso dispara. Ele parou à distância de
um braço. Perto o bastante para ela ver que seus olhos estavam sombrios. Muito
sombrios. Tão perto que, se ela disparasse, não havia como falhar. Ele ignorou
a pistola, preferindo estudar o rosto dela. Quem é a senhora?, voltou a
perguntar. Se autonomeia pelo nome bobo de Dominó e exige que eu revele o meu?
A minha identidade não é mais importante do que a sua. Que papel tem nisto? É
cúmplice? Amante de alguém? Parente de algum dos soldados que morreram, talvez?
Eu não desejaria que este encontro desencadeasse uma vingança entre familiares.
Pouco faltava para os olhos dele a atravessarem, e o seu escrutínio
perturbava-a de forma curiosa. Mesmo com todas as suas suspeitas, ele não
deixava aquele sorriso vago, cativante, que oferecia..., amizade e...,
excitação e..., coisas nas quais não deveria sequer pensar naquele momento. Ele
tinha o tipo de rosto que deixava as mulheres tontas, e a incomodava o facto de
se revelar mais susceptível do que a situação alguma vez deveria permitir. Levantou
ligeiramente a pistola, apontando-a ao nível do quadril, em vez de para baixo.
Ele olhou para a arma, mas depois o olhar voltou para o rosto dela. Só que
agora ele tinha a expressão de um homem que fora desafiado, mas que sabia ser o
vencedor. Que informação tem?, insistiu ela. Quanto dinheiro tem? Suficiente. Quanto
é suficiente para você? Não sou estúpida a ponto de adiantar o valor. Diga o
seu preço. E se não tiver? Indicou a pistola com a cabeça. Planeia forçar-me a
revelar tudo, aconteça o que acontecer? Subitamente, ele encontrava-se ainda
mais perto, o corpo dele estava a dois dedos do cano da pistola e poucos mais
dela. Ela o olhou com surpresa. Ficou sem ar. Agora parecia muito perigoso, sem
levar em conta a pistola. O olhar e o sorriso dele se destinavam a conquistar e
seduzir, e havia algo invisível a que ele dera livre curso também para esse
efeito. Duvidava de que alguma mulher conseguisse ficar imune àquele homem. Era
como se a masculinidade dele falasse ao seu eu primitivo sem que sua mente
pudesse intervir na conversa. Reagia fisicamente, ainda que se agarrasse a um
escudo mental. Pequenas flechas de estímulo eram disparadas pelo corpo.
Valente, procurou contrariar o efeito que ele provocava, mas as flechas
prosseguiam os seus excitantes trajectos, ignorando a tristeza que lhe era
própria. Seria melhor baixar a arma, disse ele suavemente. Este encontro deve
fazer de nós aliados, não adversários. Amigos, não inimigos. Disse a palavra amigos
com uma voz de veludo. Ela agarrou a pistola com mais firmeza. Dê-me a arma,
ele falou calmamente, mas era uma ordem firme. Os olhos mostravam confiança de
que levaria a melhor, como em qualquer outra coisa. Numa rebelião desesperada,
ela engatilhou a arma. Dois cliques. Afinal sabe como usá-la, disse ele,
aborrecido. Deixara de ser um amigo e estava com um ar duro e zangado. Está
sendo burra. Pelo menos não a aponte para mim. Pode disparar acidentalmente
agora. Eu uso-a se precisar. Não ponha à prova a minha determinação. Não é
determinação que sinto em você neste momento. Então os seus sentidos o enganam».
In
Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.
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