jdact
O
diamante roubado
A
Estória
«Ansiosamente
procurava o fim da estória. Escrevera-a quase de um só jacto, como se uma
inspiração tivesse descido dos céus e lhe tivesse mostrado aquele desenrolar de
enredos. Assim fora durante três dias: como de costume se levantara cedo, durante
esses três dias, e aguardara a saída do marido e dos filhos com impaciência.
Deixada só no silêncio da casa, sentara-se, rápida, na sua mesa de trabalho,
não se arrastando pela casa, como frequentemente fazia, inventando pretextos
para retardar o começo do trabalho. Isso acontecia quando ela não sabia o que escrever.
Quando previa que, sentando-se, teria de prosseguir num esforço árduo, numa
invenção laboriosa. Havia dias em que pensava que já não havia mais estórias para
contar, que poucos contos diferentes existiam. Existiriam, quando muito, uns
dez ou onze modelos, dizia dez porque era um número que toda a gente citava, a certa
dezena; dizia onze porque era um número de que muito gostava. Haveria uns dez modelos
de estórias, mais certamente onze, e depois todas as estórias eram versões desses
modelos, no fundo com poucas variantes. E por isso havia dias em que a sua escrita
lhe dava um enjoo quase insuperável, e ela inventava toda a espécie de tarefas
urgentes antes de se sentar à mesa e começar o trabalho diário. Mas surgira-lhe
então aquela estória radiante, descida do céu; prontinha, como se alguém lha sussurrasse
ao ouvido. Afadigara-se três dias inteiros, tentando acompanhar o ritmo rápido
com que a narração se lhe revelava. Helena escrevera e escrevera, antevendo o prazer
dos seus eventuais leitores: uma estória onde instalara uma heroína bela e enigmática,
com nome igual ao seu.
O
Roubo da Jóia
O cofre
estava aberto, com a porta escancarada para trás. Nada mais desaparecera senão o
anel. Caído no chão, junto à porta do aposento, estava o dono da casa, misteriosamente
morto. O médico legista observava-o.Veloso, o detective encarregue do caso, sentou-se
numa poltrona, defronte da viúva. Esta tinha um olhar angustiado, mas em tudo o
mais mantinha a calma: nos gestos, nas mãos suaves pousadas sobre o regaço. Talvez
um pouco determinadas de mais, essas mãos, como se agarrassem os joelhos, para não
tremer? Para ocultar receios, ou culpas? Recapitulemos, disse Veloso. O cofre contém
vários outros valores: dinheiro, jóias, papéis. Sim, respondeu a dona da casa, em
voz baixa. Só desapareceu o anel, com o diamante Nur, famoso em todo o mundo
pela sua água puríssima e pelo seu valor? Sim, repetiu a bela Helena; hesitou, depois
acrescentou, sempre em voz quase sussurrada. No mundo, ele é apreciado
sobretudo pelo valor em dinheiro que lhe foi atribuído. Mas eu e o meu marido apreciávamo-lo
sobretudo pela sua beleza. Pela sua transparência absoluta. Havia qualquer
coisa de estranho naquela frase que Veloso não conseguiu identificar. Como sempre
fazia em casos semelhantes, memorizou-a letra por letra, para depois a analisar
mais tarde, também letra a letra, som a som, nas mais ínfimas inflexões de voz,
deitado na cama, olhando o tecto. A posição horizontal inspirava-o
particularmente, e o escuro, e o silêncio da noite. Tudo tem um significado, acreditava,
tanto no comportamento das pessoas como nos factos que nos rodeiam, tudo se interliga
e nada acontece por acaso. Firme nestas convicções continuou perscrutando solidamente
o rosto da sua interlocutora». In Maria Isabel Barreno, O Círculo Virtuoso,
Contos, Editorial Caminho, 1996, ISBN 978-972-211-063-1.
Cortesia
deECaminho/JDACT