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Assim Dezembro se enchera de festas: primeiro esse culto gélido da semente germinando
em berço escuro, promessa discreta e ameaçada de tesouros futuros. Depois a antecipação,
tão cara ao género humano, trouxera algumas abundâncias enganosas: presentes
que enchiam os olhos das crianças, podendo-se neste ponto argumentar com a inocência
da infância, festas celebradas com fritos quentes e frutos secos, também aqui se
podendo invocar em desculpa a imitação das naturais armazenagens, os régios e mágicos
açúcares e gorduras que do cerne da semente vinham a caminho, seguindo a estrela
da vida, cheios já de presentes, ainda que simbólicos. Tudo isto era invocável,
embora com algum esforço. Mas posteriormente haviam acumulado os ruídos, as luzes,
muitas e piscantes, as trocas, as invejas e as ambições, e o dinheiro, tornando-se
símbolo totalitário, tapara de vez as superiores energias, suas simbolizadas. Era
esta alternância que urgia endireitar, enterrar os ruidosos faustos, extrair do
ventre da terra os tesouros silentes. Fora esta a tarefa que ele fora enviado a
cumprir, para que o tempo perdesse a perigosa curva que ameaçava rompê-lo no
próximo decénio.
Ele
ouviu a voz sussurrada da mulher, entrou no quarto do filho, viu-a lendo esforçadamente,
na penumbra, os cabelos caídos ocultando-lhe a face, viu a criança na sua pequena
cama de grades. Sorriu, era uma terna imagem. Querida, disse, eu entendo o teu entusiasmo
pela ficção científica, e a tua convicção de que a análise racional é sempre exigível,
de que todo o maravilhoso deve ser mostrado na mais chã e ancestral de suas origens,
mas não achas esse conto pesado demais para uma criança de dois anos? De forma alguma,
disse a mulher, vê como ele já dorme, tão tranquilo. Acordará em Setembro, a caminho
de Dezembro, quando o ruído se tornar excessivo e ele tiver que abandonar o sonho.
O
mártir e o redentor
Era um
rapazinho rechonchudo, frequentemente distraído em densos pensamentos, muito seus.
Enquanto viveu inteiramente em casa, inteiramente sob a alçada da mãe e das empregadas,
foi uma criança bem disposta, risonha e gulosa. O mundo era pouco maior do que a
cozinha e o quarto de dormir. Quando entrou para a escola tornou-se o alvo favorito
das graçolas e agressões dos outros. Chorava em casa, primeiro, contando aos pais.
O pai zangava-se, era um homem iracundo: ficava pálido, rangia os dentes de fúria.
Gritava: defende-te, tens que aprender a ser homem, eu com a tua idade. Virava-se
para a mulher e continuava a gritar: fizeste dele um inútil, um maricas. O rapazinho
deixou de contar em casa as suas desgraças. Para não afligir a mãe, para não irritar
o pai. Sentiu-se sozinho no mundo, tornou-se absolutamente vulnerável.
Continuava inclinado às suas densas reflexões, que o distraíam, que o tornavam ausente
e desajeitado, e lhe impediam os reflexos de defesa. Passara a sentir-se culpado
por esses densos pensamentos, que, no entanto, eram sempre relativos à beleza
do mundo e ao subtil funcionamento das coisas, passara a sentir-se indigno de
qualquer amor». In Maria Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns, 1993, colecção Campo da
Palavra, Grande Prémio do Conto, Editorial Caminho, 2008, ISBN
978-972-210-886-7.
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