sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Santarém Medieval. Maria Ângela Beirante. «Vários são os autores que, ao falarem da conquista de Santarém em 1147, dão como certo que Afonso I entrou na cidade pela Porta de Atamarma»

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«No dia em que surgem as cidades, começa a decadência irremediável da Idade Média feudal e mística»

«Esta é a frase lapidar de um grande historiador das cidades medievais: Henri Pirenne. Se ela é aplicável, nas suas linhas gerais, à história das cidades europeias, de intensa actividade mercantil, sofre, porém, restrições quando se aborda a problemática da história urbana na Península Ibérica e, mais concretamente, em Portugal. Estas restrições provêm, intrinsecamente, dos factores e formas de conjugaçao dos mesmos que intervieram no renascer das cidades peninsulares. No milénio anterior à reconquista cristã, os Romanos tinham instalado já na Ibéria uma estrutura urbana, assente num povoamento de tipo concentrado. Séculos depois, a civilização muçulmana, que sucedeu à romano-goda, desenvolveu os núcleos urbanos existentes, particularmente a sul da linha do Tejo. Romanos e Árabes foram homens da cidade. Mas as cidades romano-árabes da Hispânia foram incorporadas nas novas monarquias neo-godas pela força das armas, brandidas em nome de um credo. Foi o proselitismo religioso da cruzada que presidiu à instalação das grandes ordens religiosas: Templo (Cristo, posteriormente), Hospital, Calatrava (em Portugal, Avis) e Santiago, cuja presença no centro e sul do território foi notável. Foi a secular necessidade da luta pela sobrevivência e, depois, pela supremacia de uma civilização ocidental, irradiando do norte, rude embora, sobre uma civilização mais requintada e urbana, mediterrânea de influência oriental, que dignificou a classe dos milites ou cavaleiros e seu chefe supremo, o rei.
[…]

Santarém no século da Reconquista
O século XII é uma época genesíaca: época de cruzadas, de canções de gesta, da proliferação dos reinos de taifas que substituem na Península a unidade política do brilhante califado de Córdova e permitem, por um lado. as invasões Almorávidas e Almóadas e, por outro lado, o avanço da reconquista cristã. Este século constitui um marco decisivo na definição política do reino de Portugal que implantou os seus limites meridionais nas férteis planícies da Balata (campos situados na margem direita do Tejo, a jusante de Santarém, identificáveis com os campos de Valada), nome, aliás, da província ou território árabe mais ocidental. Da importância da posse de Santarém para o domínio do Ocidente peninsular nos falam, entre outros factos, os incessantes ataques de que foi alvo por parte de Cristãos e de Muçulmanos: conquistada por Afonso VI em 1093, foi recuperada pelos Almorávidas em 1111 e reconquistada definitivamente em 1147 por Afonso Henriques. Esta conquista, porém, não pôs fim à disputa entre Cristãos e Árabes pelo domínio da capital da Balata. Assim. por duas vezes (em 1171 e 1184), os Almóadas tentaram reaver, ainda que inutilmente, este grande centro militar e económico do Andaluz.

A conquista da Alcáçova
Não é fácil discernir de maneira clara e distinta certos pontos obscuros da história de Santarém, como é o caso da sua conquista e do seu perímetro amuralhado. Ambos os problemas se entrecruzam, porquanto o equacionar do primeiro envolve uma resposta para o segundo, o que de modo algum parece fácil. Vários são os autores que, ao falarem da conquista de Santarém em 1147, dão como certo que Afonso I entrou na cidade pela Porta de Atamarma. Assim o afirmaram, no século XVIII, Luís Montês Matoso e Inácio Piedade Vasconcelos. Este último autor presume que Mem Ramires deve ter alcançado a muralha entre a Porta de Atamarma e a subida das Figueiras na Mouraria, enquanto o irmão do rei teria dado a volta pela direita até à Porta de Leiria. Data, pelo menos, do século XVI a tradição de que a Porta de Atamarma (que tinha como um dos acessos a actual calçada de Mem Ramires) fora o lugar de entrada do Conquistador (a oração que o licenciado Lopo Castanheda fez quando João III visitou Santarém, a 2 de Junho de 1524). Em 1920, consagrou-se monumentalmente esta tradição levantando um obelisco na zona da Atamarma. Tal convicção fundamenta-se, ao que me parece, num certo equívoco de interpretação da fonte documental que testemunha o acontecimento: o relato da tomada de Santarém, posto na boca do próprio Afonso Henriques por um monge de Alcobaça, no qual o rei justifica o estratagema usado na sua conquista com o facto de ser uma povoação excelentemente defendida (Codex 207 de Alcobaça)». In Maria Ângela V. Rocha Beirante, Santarém Medieval, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (35813), 1ª edição em Português, Dezembro de 1980.

Cortesia da UNL/FCSH/JDACT