jdact
O
perímetro amuralhado
«(…)
Em qualquer das hipóteses, está fora de dúvida a ideia de que a Alcácova
constituía então uma unidade inteiramente autónoma no conjunto da povoação. No
século XIII, porém, a povoação encontra-se amuralhada totalmente ou em grande
parte. Pergunta-se: foram os reis portugueses que mandaram erguer estes muros
ou já os herdaram dos governadores árabes? Inclino-me pela primeira hipótese. Outro
problema que se põe é o da articulação da muralha da Alcáçova com a muralha da
vila. Embora a leitura do relato da conquista de Santarém nos possa deixar
entrever a possibilidade da construção de uma muralha rodeando todo o Alplan,
penso que as muralhas erguidas por ordem do alcaide Abu Zakaria foram apenas um
reforço da defesa da parte ocidental da Alcáçova que anteriormente teria ruído.
Este desabamento ou fractura da muralha deixou vestígios na toponímia, pois
existia aqui um lugar designado por muro quebrado (murum quebradum ou murum fractum, nos documentos mais
antigos). Os cartórios do convento de Avis e de Santa Maria da Alcáçova guardam
memórias desse facto.
Além
deste problema da fractura que é atestada pela documentação, é provável que o
último grande governador árabe de Santarém quisesse alargar o perímetro da Alcáçova
pela necessidade de proteger junto de si os familiares dos oficiais e soldados
do seu vitorioso exército, enriquecido nas algaras. Tal alargamento só podia
ser feito em terrenos do Alplan. Deixando as conjecturas, vamos aos factos com
suporte documental. Temos a certeza do muro quebrado, à distância de
apenas oitenta anos da nova cintura amuralhada do último grande vizir ou caide muçulmano
e da conquista astuciosa pelo primeiro rei português, e a poucas dezenas de
anos dos cercos rigorosos a que os Almóadas submeteram os Cristãos refugiados
no roqueiro castelo. A referência mais antiga que conheço vem no
Obituário de Santa Maria da Alcáçova incluído no maço I do convento de Avis e
diz respeito ao ano de 1226: Paio Joanes Pinhão deixa àquela igreja uma casa
perto do muro quebrado. Depois desta, há cinco referências ainda no nresmo
Obituário à muralha derrubada: duas sem data e três da primeira metade do século
XIII (em 1231; em 1232; e em 1245). Sobre a muralha destruída são também
esclarecedores os seguintes documentos do cartório da Alcáçova: o primeiro é de
1281 e informa-nos que Domingos Peres Cabaços, cónego e procurador do prior Pedro,
emprazou uma casa junto do muro quebrado. O segundo é de 1363, e localiza uma
casa da colegiada junto com o muro quebrado. Uma legenda que vem no
verso deste documento, em letra, ao que parece, do século XVII regista: aforamento
de huma casa em alcaçova sobre (?) a torre do Bufo. No ano seguinte, faz-se
o emprazamento de hüas casas que a dicta egreia ha na dicta villa na
Alcaceva. As quaes partem de hüa parte com Azinhagaa que vay per cima da porta
da Alcaceva e com rua publica. Na capa deste último pergaminho há uma notícia,
em letra que suponho do século XVII, do seguinte teor: aforamento de huas
casas na Alcaceva na rua da torre do Bufo.
Várias
inferências podemos tirar do cotejo destes documentos. A primeira diz respeito
à importância da fractura da muralha que todas as obras de restauração não dissiparam
da memória das gentes, pelo menos até ao século XlV, sendo de admitir que parte
dessa antiga muralha se mantivesse de pé. A segunda inferência consiste na
relacionação do muro quebrado com a falada Torre do Bufo, concluindo-se mesmo
que esta torre e a muralha desabada se situavam nas proximidades da Porla da
Alcáçova. De modo geral, todos os historiadores de Santarém nos lembram a existência
da Torre do Bufo dentro da Alcáçova. identificando-a, por vezes, com aquela que
Fernão Lopes constata servir de cofre do tesouro real: outra torre avia no castello
de Santarem, em que outrossi estava mui gram tesouro de moeda e doutras cousas,
em tamanha cantidade, que ante apontavam fortemente por nom cahir com o muito
aver que em ella poinham». In Maria Ângela V. Rocha Beirante, Santarém
Medieval, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
(35813), 1ª edição em Português, Dezembro de 1980.
Cortesia da
UNL/FCSH/JDACT