terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Um Imaginário Europeu. Maria Isabel Barreno. «E assim regresso à vergonha. Exagero, quando a enuncio? Todas as crianças querem ser iguais aos seus pares, todos os emigrados têm essa dor de identidade fragmentada?»

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Primeiro andamento
«(…) Um país pode ser terceiro-mundista e ter uma excelente literatura e meia dúzia de bons cineastas. O passadismo torna-se incontornável quando tentamos algum tema mais englobante: papel de Portugal na história europeia e mundial, características essenciais da cultura portuguesa. Ou o turismo. Ou a identidade nacional. Em todos estes temas fazemos a festa com os descobrimentos, os monumentos históricos e o fado, juntando um pouco da fundação do país e do sebastianismo, se a ementa necessitar de mais alguns condimentos. Duas simples perguntas: por que não há cartazes do ICEP com obras de Siza Vieira? Por que é que de todo o nosso património arquitectural moderno o único monumento figurando em cartazes do ICEP é o monumento das Descobertas? O problema de fundo é que não nos estimamos. Não nos estimamos (ainda) no presente, não nos estimamos suficientemente para termos de nós, portugueses, uma imagem positiva e afirmativa.
E assim regresso à vergonha. Exagero, quando a enuncio? Todas as crianças querem ser iguais aos seus pares, todos os emigrados têm essa dor de identidade fragmentada? Não exagero certamente quando digo que essas crianças, nas suas visitas a Portugal, pouco ouvirão que as encoraje a ter algum orgulho de suas raízes portuguesas. O tom dominante em Portugal é (ainda) o lamento, a autoflagelação, o lá fora é que é bom, neste país nada presta. Apesar de termos quebrado o nosso isolamento, de conhecermos mais sobre o mundo, de nos termos tomado menos provincianos. A vergonha tem várias gradações e formas. Para além da vergonha sem disfarces das crianças, crescem a raiva, a timidez, a introspecção obsessiva e acusadora. Com o passar do tempo, tive frequentes oportunidades de analisar as muitas e desvairadas reacções dos portugueses aqui residentes a essa imagem negativa de Portugal, as minhas incluídas. Uma generalizada mistura de indignação contra a arrogância e o egocentrismo franceses e de, surpresa?, autoflagelação. Uma autoflagelação onde parecem coexistir estranhamente a impotência total, somos assim, não há nada a fazer, com a mais irreal ilusão de omnipotência, nós (ou Portugal, ou o governo) é que temos a culpa, culpa de tudo, aí incluída a ignorância francesa. A partir deste ponto, dividem-se as reacções por classes. Todos os que dispõem de um nível cultural e económico confortável tratam de desligar-se da imagem negativa pelas formas de afirmação individuai mais variadas. Os outros, as concierges e os maçons, defendem-se fechando-se num colectivo, a comunidade, as associações reinventando folclores e tradições, confundindo identidade nacional com microcosmos regionais, sonhando com um Portugal que já não existe. E aqui cheguei a um dos pontos nevrálgicos da motivação para a escrita deste livro: o sofrimento.
A motivação para tentar transformar notas dispersas e de objectivo incerto num texto de reflexão e vivência, de razão e sentimento. O sofrimento dos emigrantes, no qual poucos parecem reparar. A sua perda de identidade. Os seus esforços patéticos para juntar os pedaços que espalharam pela estrada no seu ir e vir de desassossego. Fui convidada pelas autoridades francesas a assistir a uma atribuição de prémios que se passava num hospital pediátrico. Turmas de alunos de várias escolas francesas tinham feito trabalhos sobre um país europeu, à escolha. Essa iniciativa envolvia também uma componente de solidariedade com as crianças hospitalizadas, por isso fora o hospital escolhido como local da festa. Uma turma de crianças que fizera um trabalho sobre Portugal (com um professor francês) ganhou um prémio. No final fui felicitar a classe. Por que escolheu Portugal?, perguntei ao professor. Já eu estava em França havia mais de um ano. perguntei sem grande esperança de receber respostas animadoras ou interessantes. Porque tenho muitos alunos de origem portuguesa respondeu-me, e eles têm uma auto-estima tão baixa! Achei que este trabalho poderia ajudá-los. Olhei os meninos, que iam saindo da sala, terminada a sessão. Caras tristes, premiadas e tristes. Tão tristes como a tristeza daquele hospital de crianças doentes». In Maria Isabel Barreno, Um Imaginário Europeu, Editorial Caminho, 2000, ISBN 978-972-211-365-8.

Cortesia de ECaminho/JDACT