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Parámos muitas vezes, e de cada vez esperei que Lila resolvesse voltar para
trás. Estava toda suada, ela não sei. De vez em quando Lila olhava para o alto,
mas não percebi porquê, só se via o tom cinzento das janelonas em cada patamar.
De repente as luzes acenderam-se, mas pálidas, empoeiradas, deixando amplas
zonas de sombra, cheias de perigos. Esperámos, tentando perceber se fora dom Achille
que girara o interruptor, mas nada ouvimos, nem passos, nem porta nenhuma a abrir
ou a fechar. Depois Lila continuou, e eu segui-a. Ela achava que estava a fazer
uma coisa certa e necessária, eu esquecera qualquer boa razão e, sem dúvida, só
estava ali porque ela também estava. Subíamos devagar, dirigindo-nos para o maior
dos nossos terrores de então, íamos expor-nos ao medo e questioná-lo. No quarto
lanço Lila comportou-se de forma inesperada. Parou à minha espera e, quando a alcancei,
deu-me a mão. Esse gesto mudou tudo entre nós para sempre.
A culpa
fora dela. Não havia muito tempo, dez dias, um mês. Sei lá, não sabíamos nada
sobre o tempo, nessa época, tirara-me a boneca à traição e lançara-a para dentro
de uma cave. Agora íamos subindo em direcção ao medo, e nessa altura tínhamo-nos
sentido na obrigação de descer, e a correr. para o desconhecido. Para cima ou para
baixo, parecia-nos sempre que íamos ao encontro de algo terrível que, embora existisse
havia mais tempo do que nós, era por nós e só por nós que esperava. Quando se
está há pouco tempo no mundo, é difícil compreender quais os desastres que
estão na origem da nossa sensação de desastre, talvez nem sintamos necessidade disso.
Os adultos, à espera do amanhã, movem-se num presente para trás do qual há o ontem
ou o anteontem ou no máximo a semana passada. No resto não querem pensar. As crianças
não sabem o significado do ontem, do anteontem, nem do amanhã, tudo é isto e agora:
a rua é esta, a porta é esta, as escadas são estas, esta é a mamã, este é o
papá, isto é o dia, isto é a noite. Eu era pequena e, vendo bem, a minha boneca
sabia mais do que eu. Falava com ela, ela falava comigo. Tinha cara de plástico,
cabelos de plástico e olhos de plástico. Usava um vestidinho azul que a minha mãe
lhe fizera num raro momento feliz, e era linda. A boneca de Lila, pelo contrário,
tinha um corpo de trapo amarelado cheio de serradura, para mim era feia e asquerosa.
Espiavam-se mutuamente, tiravam as medidas uma à outra, estavam prontas para
saltar para os nossos braços se rebentasse um temporal, se fizesse trovões, se alguém
maior e mais forte e com os dentes aliados lhes quisesse pegar.
Brincávamos
no pátio, mas fazendo de conta que não brincávamos juntas. Lila sentava-se no
chão, num dos lados da fresta de uma cave, e eu no outro. Gostávamos daquele
sítio, em primeiro lugar porque podíamos arrumar sobre o cimento do peitoril, por
entre as grades e contra a rede de protecção da fresta, as coisas da minha
boneca, que se chamava Tina, e da boneca de Lila, que se chamava Nu. Ali púnhamos
pedras, tampas de gasosa, florzinhas, pregos, lascas de vidro. Eu captava o que
Lila dizia a Nu e dizia o mesmo a Tina em voz baixa, com ligeiras alterações. Se
ela pegava numa tampa e a punha na cabeça da boneca como se fosse um chapéu, eu
dizia à minha, em dialecto: Tina, põe a coroa de rainha, senão vais ter frio. Se
Nu jogava à macaca nas mãos de Lila, daí a pouco eu punha Tina a fazer o mesmo.
Mas nunca acontecia combinarmos uma brincadeira e participarmos nela em
conjunto. Até aquele lugar não era escolhido por acordo. Lila ia para lá e eu
andava às voltas, fingindo que ia para outro sítio. Depois, como quem não quer a
coisa, punha-me também ao pé da fresta, mas do lado oposto.
Aquilo
que mais nos atraía era o ar frio que vinha da cave, uma lufada que nos
refrescava na Primavera e no Verão. E depois gostávamos das grades com teias de
aranha, do escuro e da rede de malha fina, avermelhada pela ferrugem e
encaracolada nos cantos, tanto do meu lado como do de Lila, formando duas
fendas paralelas, através das quais podíamos deixar cair pedras para o escuro e
ouvir o ruído quando chegavam ao chão. Era bonito e assustador, como todas as coisas
naquele tempo. Por aquelas aberturas o escuro podia tirar-nos de repente as bonecas,
por vezes em segurança no nosso colo, mas as mais das vezes postas de propósito
junto da rede retorcida e portanto expostas ao bafo frio da cave, aos ruídos ameaçadores
que de lá saíam, ao resmalhar, aos estalidos, às raspadelas». In
Elena Ferrante, A Amiga Genial, 2011, Relógio d’Água, 2014, 978-989-641-479-5.
Cortesia de Relógio
d’Água/JDACT