Cortesia
de wikipedia e jdact
O fascismo dos bons homens
«Somos
bons homens, não digo que sejamos assim uns tolos, sem a robustez necessária,
uma certa resistência para as dificuldades, nada disso, somos genuinamente bons
homens e ainda conservamos uma ingénua vontade de como tal sermos vistos,
honestos e trabalhadores, um povo assim, está a perceber, pousou a caneta,
queria tornar inequívoca aquela ideia e precisava de se assegurar da minha
atenção, não tenho muita vontade de falar, sabe, senhor, estou um pouco
nervoso, respondi, não se preocupe, continuou, a conversa é mais para o
distrair e, se ficar distraído sem reacção, também não lho levo a mal. É o que
fez a liberdade, acrescentou, um dia estamos desconfiados de tudo, e no outro
somos os mais pacíficos pais de família, tão felizes e iludidos, e podemos
pensar qualquer atrocidade saindo à rua como se nada fosse, porque nada é. As
ideias, meu amigo, são menores nos nossos dias. Não importam, as liberdades
também fazem isso, uma não importância do que se pensa, porque parece que já
nem é preciso pensar, sabe, é como não termos sequer de pensar na liberdade, é
um dado adquirido, como existir oxigénio e usarmos os pulmões, não nos hão-de
convencer que volte a censura, qualquer tipo de censura, isso seria uma
desumanidade e agora somos europeus, qualquer iniquidade do nosso peculiar espírito
há-de ser corrigida pela Europa, para sempre, isto é que é uma conquista, e é
como respirar, existir oxigénio e usarmos os pulmões, não se mete requerimento,
faz-se e fica feito e não passa pela cabeça de ninguém que seja de outro modo. Eu
estava impaciente, abanava a cabeça como se concordasse, que era o meu modo de
atalhar pela conversa com maior rapidez e sem enlouquecer, a Laura não recebia
alta e os médicos iam e vinham sem me atenderem por um minuto que fosse, o
homem voltava a usar a caneta nos formulários intermináveis que preenchia, e
repetia, se não dermos nas vistas, podemos passar uma vida inteira com os
piores instintos, e ninguém o saberá, com a liberdade, só os cretinos mais
incautos passaram a ser má gente, tudo o resto preza-se e cabe na sociedade de
queixo erguido, e isso leva-nos a quê, perguntei eu. A quê, retorquiu,
exultante pelo meu aparente interesse, sim, respondi algo provocador, o que
quer dizer com isso, na verdade, na prática, o que significa uma afirmação toda
ensimesmada dessas, ele voltou a pousar a caneta, pôs-se de pé com ar de quem
faria um rodeio interminável mas, depois da hesitação, foi directo ao assunto,
respondeu, num tempo em que todos somos bons homens a culpa tem de atingir os
inocentes, pensei nos inocentes, não sou um homem piedoso, não; há inocentes, o
senhor, se não se importa, vai ver como está a minha mulher, já cá entrámos há
duas horas e para uma má disposição depois do lanche começa a parecer-me muito
tempo, tenha calma, senhor, tenha calma, isto por aqui anda pelas horas de
deus. Não acredito em Deus, respondi-lhe, chegam-me os homens, e ele retorquiu,
e acha que acredito eu. Não. É só um modo de falar, deitamos mão ao que diz o
povo e falamos sem pensar, fui para ao pé da janela, estava um dia turvo, não
coberto de nevoeiro, mas de uma claridade espessa, difícil de transpor, a
queimar os olhos ameaçando uma tempestade para breve, ele levantou-se também e disse,
ficou abafado, odeio estes dias. Respondi, como eu. Ele volveu. Não ficou
aborrecido com a nossa conversa, senhor Silva, pois não. Eu disse que não. São
coisas tolas de quem pensa muito na vida, insistiu, porque na morte dá medo
pensar, não se canse, também penso, e neste momento, como sabe, preocupo-me com
a vida da minha mulher, ficámos um instante a perscrutar o exterior como se
quiséssemos que enfim desabasse aquele céu pesado, mas não aconteceu nada. O
homem interrompeu o silêncio para me explicar que também se chamava Silva,
Cristiano Mendes Silva, e eu imediatamente pensei em nós dois como a frente e o
verso, eu, António Jorge Silva, e ele, o
Silva da Europa, o peito inchado de orgulho como se tivesse conquistado tudo sozinho,
continuou, somos todos Silvas neste país, quase todos, crescemos por aí como
mato, é o que é. Como as silvas, somos silvestres, disse eu, obrigado a sorrir
já como quem suplica uma trégua, exactamente, concordou, assim do mato,
grassando pelo terreno fora com cara de gente, mas muito agrestes, sem educação
nenhuma, eu torci a cara e não respondi, depois não resisti a acrescentar, olhe
que somos gente educada, e ele quase me repreendeu, mas a educação tem sido
apertada neste país, à paulada, ou não lhe parece, achei que aquele Silva era
um imbecil dos grandes e que me estava a empatar as energias com retóricas a
chegar a um ponto em que a irritação me fazia agir contra a vontade de estar quieto.
E ele insistiu, já no limite, mas somos bons homens, podemos acreditar no que
quisermos, seremos sempre bons homens, nós, os portugueses, somos mesmo, ponha
isso na sua cabeça, colega Silva, e a mim ninguém me apanha diminuído como outrora,
somos europeus, eu sou um Silva da Europa, isso é que ainda há muitos que não o
são, só porque ainda não o aceitaram ou não o perceberam, mas, sabe o que lhe
digo, é inevitável, vai chegar a todos, é tempo, é tempo, um dia seremos
cidadãos de um mesmo mundo, iguais, todos iguais e felizes nem que seja por
obrigação, estamos a alastrar, como nos compete, e um dia ainda deixaremos de
ser silvestres, agrestes, isso de ir como o mato, porque estaremos cada vez com
melhores maneiras, sofisticados e cheios de nuances de interesse, subtilezas
como as que assistem aos grandes caracteres, um dia, caramba, estaremos até
cheios de razão». In Valter Hugo Mãe, A Máquina de Fazer Espanhóis, Porto Editora, 2016,
ISBN 978-972-004-733-5.
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