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As
Mulheres de Camões. Violante de Andrade. 1543
«(…)
Em Coimbra não havia forma de tomar juízo e o mais das vezes não atendia às palestras
dos mestres. Ele mesmo mo confessou: era mais forte o apelo das margens do
Mondego, a sombra dos chorões espelhada no rio, os prados, as sebes em flor os
lavadoiros onde cantarolava a frescura sadia das moças simples e louçãs do que
as paredes húmidas das salas de aula encarrapitadas no topo íngreme da colina,
de costas para tudo. Certo dia, aquando de uma das estadas do tio Bento, meu
cunhado, em Lishoa, dispus-me a indagar como iam os estudos de Luís Vaz. Custou-me
a entender, mas lá fiquei a saber que os estudos menores no Mosteiro de Santa
Cruz se dividiam em dez classes e que, das portas para dentro, os moços eram obrigados
a comunicar apenas em latim e grego, mesmo entre eles e nas horas de recreio. Na
décima classe os rapazinhos de sete anos aprendiam a ler, escrever e declinar o
latim. As moças ficavam de parte, outras tarefas caseiras as entretinham. Na
nona classe começavam então a ler em duas línguas: latim e português. Na oitava
já liam Cícero e nas classes seguintes aprofundavam-no e acrescentavam-lhe
Terêncio e Ovídio, para que na terceira classe começassem com a retórica. Disse-me
dom Bento que na segunda e na primeira classe já não se ia em batotas: tinham
de saber Cícero e Virgílio com segurança, sendo-lhes exigidos ensaios de
composição, declamação e versificação e muitos exercícios de improviso; mas só
na primeira classe podiam falar com historiadores, poetas e oradores e, aí sim,
em português. O abade Bento contou-me o entusiasmo com que Luís Vaz se pusera a
folhear a gramática portuguesa de Fernão Oliveira e a segunda gramática
impressa, também em língua portuguesa, uma cartilha com figuras, da autoria de
João Barros; e de como, pouco tempo passado, se deitara a escrever versos e
versos, acabando por lhos dedicar todos.
Insisti
para que me dissesse em que classe ia Luís Vaz, mas por resposta só obtive um
encolher de ombros: vai indo! Já traduz Petrarca, já sabe de cor Orlando
Furioso, de Ariosto, e lê tudo o que pode de Boscán, Garcilasso e Sannazaro.
Vale-se da memória, que nele é mais sólida e mais duradoura do que a pedra. A
leitura que tem, a mim a deve! Franqueei-lhe a entrada na livraria de Santa Cruz
e também na da universidade, tantas vezes que já lhes perdi a conta. Para
mim todos aqueles nomes eram um absoluto mistério. Fui acenando com a cabeça e
achei melhor nada mais indagar. O meu cunhado já carregava o peso da idade.
Talvez lhe custasse a entender a juventude ardente do sobrinho. Fiz bem em ter
ido à Sé encontrar-me com o abade Bento. Deslizei até à sacristia, aproveitando
o final do ofício e, afastando o véu que me cobria o rosto, anunciei-me a meu
cunhado. Abraçou-me com força, ternura e saudade, mas nada me revelou que eu
não suspeitasse já. Disse-me e insistiu que era conveniente que Luís Vaz ganhasse
tino, agora que passara a Xabregas, pois que em Coimbra nada nem ninguém o
amarraria mais aos bancos da universidade. O rapaz nasceu com um dom raro,
comadre. Tudo lhe interessa, por tudo arde de curiosidade, tudo o distrai, tudo
o chama, tudo menos as lições. E é bom que se recorde que foi a minhas expensas
e por minha intercessão que por lá passou... Espero que não desonre o meu nome.
Luís Vaz deixa-se ir, certas amizades…, bom, é melhor que nem te o conte pela metade!
As lágrimas
corriam-me pelo rosto e apressei-me a limpá-las com as costas da mão. Na ausência
do pai, era sobre os meus ombros que recaíam todos os trabalhos. A culpa do seu
temperamento ocioso e imponderado havia de ser tão-só, minha, que o criara como
se fora meu. Quando o terramoto fez tremer Lisboa e a peste correu atrás do que
restava dos vivos, era Luís Vaz menino de primeiras palavras. O pai, o meu Simão,
pensou em fugir para Coimbra, para junto de frei Bento, seu irmão, que sempre nos
amparou como me ampara agora e que por certo nos daria abrigo; mas quis Deus que
a peste nos passasse à porta e seguisse viagem, ceifando outras vidas noutras moradas.
Voltou Deus a querer que escapássemos quando, seis anos volvidos, novo tremor sacudiu
a cidade de Lisboa com fúria tal que vimos a morte, de negro capuz e gadanha, a
vir por nós. Lembro-me de puxar o menino pare o regaço, fazendo-o ajoelhar na
soleira da porta para que se encomendasse ao Altíssimo.
Difícil
de criar, Luís Vaz. Vagueando pela Mouraria, falando sozinho, dizendo coisas nunca
ouvidas, perdendo-se por becos e travesses. Não queria que lhe ensinassem as primeiras
letras, que as já sabia só de as escutar. Diziam que saía ao primo Simão Vaz Júnior,
um estoura-vergas escalador de conventos, que só a protecção do malogrado príncipe
João Manuel ia livrando das malhas da justiça. Luís Vaz teimava que não havia de
estudar para padre: por onde andas, Luís Vaz? Aos pardais, senhora mãe. Volta, Luís
Vaz. Um dia, senhora. Não há-de tardar». In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro,
LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.
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