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Primeiro Voo do Falcão
«(…)
Ouviu-se missa, a pregação conveniente a tanto homem que partia para tão santa
empresa, e foram-se para Arzila onde chegaram a 20 de Agosto, de noite. Ouvido o
Conselho, o Rei enviou a terra Álvaro Castro e João Coutinho, conde de Marialva,
que desembarcaram com seus homens na praia para impedir que a vila fosse socorrida
pelos mouros e prepararem as defesas para o desembarque d’el rei e de sua gente.
O calor apertava e o dia nasceu sufocante, púrpura e ouro sobre um mar tão
vermelho, àquela hora, como sangue. O acesso à fortaleza era difícil porque o porto
interior só permitia o acesso a pequenas embarcações. A barra, no extremo norte,
tornava tudo ainda mais perigoso e difícil. Só no lugar, com os efectivos em
marcha, se tomava consciência de certas falhas do plano... Depois o vento norte
começou a soprar violento, apesar do calor, porque feria o mar rijamente, levantando
grossas ondas que dificultavam o avanço das pequenas embarcações pejadas de homens
armados. Afonso não esperou mais. Quis compartilhar os problemas dos seus homens
e, num daqueles impulsos irracionais que podem trazer a glória ou a morte
certa, saltou para a praia com o príncipe e os seus soldados. Toda a armada lhe
seguiu o exemplo. O rei assentou o arraial em terra, levantou bastiões e organizou
o cerco. Os sitiados não conseguiam reforços porque o Mulei Xeque, senhor de Arzila,
lutava contra o xerife de Fez, cercando com o seu exército a cidade dos curtumes
e dos tapetes, o labirinto de Fez onde os ossos do Infante Santo apodreciam.
Tentaram render-se, mediante condições, mas Afonso não aceitou. Sabia-os na mão
e queria a carnificina. Refugiaram-se os Muçulmanos na mesquita e no castelo.
De nada lhes serviu. O conde de Marialva, só no templo, sem olhar à idade e
sexo, foi cortando cabeças, pernas, braços, num delírio. Finalmente, houve um infiel
que, mesmo ferido, lhe cortou as pernas ao cavalo. Ele caiu e chegou a sua vez de
ser despedaçado.
João,
com dezasseis anos, portou-se como um homem de experiência, um soldado,
batalhando com denodo, coberto de sangue dos seus inimigos. A perícia do jovem e
a sua visão militar e estratégica, em breve, sobrepor-se-iam às do pai. No dia
imediato à grande conquista, a mesquita, pejada de corpos de cristãos e
muçulmanos que a morte finalmente igualara no seu amplexo frio e indiferente, foi
limpa e consagrada e aí o jovem Falcão, perante o que restava do corpo do conde
de Marialva, foi solenemente armado cavaleiro. A nova igreja foi dedicada a Nossa
Senhora da Assunção. O bispo de Tânger disse missa pontifical e outra de requiem
pelos cristãos mortos em batalha. Não foram contados. Para quê?, se o seu sangue
valera a vitória e a praça, enfim, conquistada! Cinco mil cativos era um bom prémio
e, no magote, as mulheres e os filhos de Mulei Xeque. Afonso não aceitou o resgate
e trouxe-os para Portugal porque queria que eles servissem de moeda de troca
para as ossadas do Infante Santo, o que aconteceu de facto. Mulei Xeque estava
a mãos com problemas internos e queria o trono de Fez. Lá se fizeram as pazes entre
o chefe muçulmano e Afonso V para que o primeiro resolvesse os seus prementes problemas
internos. Em poder dos portugueses ficariam as aldeias e campos de Arzila, as outras
praças onde flutuava a bandeira portuguesa, de Ceuta a Alcácer Ceguer, e todas
pagariam tributo a Portugal através dos habitantes autóctones desses lugares. Mas
algo de inusitado aconteceu. Os habitantes de Tânger, receosos que lhes sucedesse
o desastre que tombara sobre Arzila, resolveram entregar a praça aos Portugueses.
A cidade,
os campos, as hortas, os fartos pomares que a rodeavam. Debandaram em massa da
cidade. Afonso não queria acreditar. Enviou ao local, em reconhecimento, João, filho
do Bragança. Confirmou a notícia. O fruto tão apetecido caía assim da árvore da
sorte nas mãos ávidas dos Portugueses, na Coroa nacional. Rui Melo foi nomeado capitão
governador da praça e o rei de PortugaL enviou, sob o olhar orgulhoso de seu filho,
cartas ao papa e a todos os reis cristãos e cidades e vilas do seu reino com a
notável notícia. O Príncipe só já não aceitou com tanta alegria as regalias que
o mãos largas do pai concedeu aos sôfregos nobres que o rodeavam: títulos,
capitanias, e outras mercês de vulto, mas ainda era cedo para se opor ou emitir
opinião. Logo em Dezembro morria em Dijon a duquesa de Borgonha... A morte levara-a
também, como ao irmão bastardo, antes de assistir ao fim do próprio filho..., e
ela mereceu esse acto de misericórdia do destino. Conquistara-o com a sua
nobreza e bondade. Um Falcão conquistara também a sua presa. Figuraria, belo e
sereno, na tapeçaria que o pai mandaria tecer no estrangeiro, segundo um mirífico
e requintado desenho de Nuno Gonça1ves, belo sim, hierático, armado, olhando,
impassível, o horizonte. Foi o ano em que Sisto IV ocupou o trono pontifício e em
que a infanta dona Joana se retirou para o convento de Odivelas e esse pequeno facto,
aparentemente de somenos importância, iria demonstrar a todos a fibra do jovem Falcão
e a sua primeira batalha perdida (porque só foram três) dentro do seu próprio Reino
e durante a sua vida». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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