sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Goa ou O Guardador da Aurora. Richard Zimler. «Fechei o punho e brandi-o na direcção dele, como que para confirmar que era o vilão de um drama escrito para mim por um inimigo secreto, a pessoa que me traíra e provocara a minha prisão»

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«(…) Quem afirma que as pessoas nunca podem realmente mudar nunca esteve numa prisão, não conheceu esse miserável caminho de reclusão que acaba necessariamente na morte. Cerrou os lábios com força como se não quisesse exprimir uma terrível verdade, e percebi o que já se devia estar mesmo a ver, eu é que era a pequena criatura sem alma de que ele tinha pena. Ri-me pela primeira vez desde há uma eternidade; ser mais digno de pena do que um insecto esmagado parecia um feito considerável. Se o meu espírito não me tivesse quase abandonado, havia de encontrar uma maneira de nos matar aos dois, disse-lhe. Pôs-se a fitar-me, com aqueles olhos negros cheios de dó. Eu desprezava a sua prontidão em sentir tanto por alguém de quem não sabia nada.
E que tal se eu te batesse, gostavas?, disse eu, pondo-me de pé. Ainda te preocupavas assim tanto comigo? O impulso de o castigar irrompeu em mim com a força destruidora de uma casa a ruir. Posso muito bem dar cabo de ti e ninguém aqui virá deter-me. Até ficam satisfeitos. Fechei o punho e brandi-o na direcção dele, como que para confirmar que era o vilão de um drama escrito para mim por um inimigo secreto, a pessoa que me traíra e provocara a minha prisão. As mãos do jaina ergueram-se-lhe num repente para proteger a face, e nesse gesto percebi que, além de o queimarem, o tinham agredido. Afastei-as à punhada e foi como se uma corda se tivesse rompido cá dentro e eu estivesse a cair para fora de mim, desamparado. Continuei a bater-lhe até lhe fazer espirrar o sangue da boca.
Logo, porém, o horror ante aquilo em que me transformara fez-me soçobrar. Murmurei uma desculpa e recolhi-me à cama, encostando os joelhos ao peito. Fechei os olhos e durante horas não disse nada, tentando imaginar o que o meu pai gostaria que eu fizesse, mas a voz dele desaparecera de dentro de mim. Ao crepúsculo, ajoelhei-me junto ao meu companheiro de cela. Mata-me, murmurei. Não posso. É-me proibido. Por favor, não percebes. Não poderia suportar ser queimado ou obrigado a engolir água até sufocar. Se for torturado, poderei revelar os nomes de pessoas que me ajudaram a mim e ao meu pai. Se morrer, a minha noiva poderá casar com outro homem. Segurei-lhe no ombro. Asfixia-me de noite, quando estiver a dormir. Dou-te tudo o que tenho por esse acto de bondade. Digo-te aonde hás-de ir quando te libertarem, e poderás ir buscar os meus pertences à minha irmã e ao meu tio.
Abanou a cabeça. Afastei-o com um empurrão. Nessa noite, veio a rastejar deitar-se a meu lado. Tomou-me a mão e apertou-a com força. Perdoa-me ter-te falhado, murmurou. Mil perdões. Empurrei-o, mas ele agarrou-se a mim com força. Era muito mais forte do que eu pensava. Por mim, tinha a certeza de que a persistência dele era sinal de loucura, mas um sinal abençoado, pois assim ficávamos em pé de igualdade nesse período que passaríamos juntos.
Ficámos calados. Recordei a minha irmã aos quatro anos, com os olhos reluzentes de alegria; dentro do cesto que lhe estendia estava uma borboleta que apanhara, não do tipo que o jaina dissera, mas outra, escarlate e dourada. Adejando, foi pôr-se na borda do cesto e flectiu as asas, refulgindo ao sol como um fragmento de vitral. A minha irmã pôs-se a rir quando me viu cheirá-la. Quando a borboleta levantou voo, ergueu as mãos e gritou de alegria. De pé por trás dela, pus-lhe as mãos nos ombros, pesando-lhe com o meu amor, como aprendera com Nupi, a nossa cozinheira e criada. Tinha a certeza de que ficaríamos sempre juntos. O jaina acariciou-me a face. Difusamente, sabia que estava a pedir-me os meus pensamentos. Ou, então, se calhar, a solidão em que vivera durante um ano levava-me a querer acreditar que todos os gestos dele eram um convite a que falasse do meu passado. A borboleta que apanhei não era do tipo que disseste, confessei. E não a matei. Apenas queria mostrá-la à minha irmã. E cheirá-la, embora agora isso pareça muito estranho. Pôs-se a rir docemente. Virei-me de lado para ele. Sentia a sua respiração húmida contra a face. Parecia-me o vento de Deus que me faltara. A escuridão da nossa cela não me permitia ver mais do que as formas esfumadas da minha imaginação, mas acreditava que ele estava a espreitar para algo muito fundo dentro de mim. Senti a inquirição como uma pedra no peito. Apeteceu-me abraçá-lo, mas sabia que começaria a soluçar se o fizesse». In Richard Zimler, Goa ou O Guardador da Aurora, 2005, Gótica 2000, Difel, 2005, ISBN 978-972-792-145-0.

Cortesia de Gótica/Difel/JDACT