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«(…)
Quem afirma que as pessoas nunca podem realmente mudar nunca esteve numa
prisão, não conheceu esse miserável caminho de reclusão que acaba
necessariamente na morte. Cerrou os lábios com força como se não quisesse
exprimir uma terrível verdade, e percebi o que já se devia estar mesmo a ver,
eu é que era a pequena criatura sem alma de que ele tinha pena. Ri-me pela
primeira vez desde há uma eternidade; ser mais digno de pena do que um insecto
esmagado parecia um feito considerável. Se o meu espírito não me tivesse quase
abandonado, havia de encontrar uma maneira de nos matar aos dois, disse-lhe. Pôs-se
a fitar-me, com aqueles olhos negros cheios de dó. Eu desprezava a sua
prontidão em sentir tanto por alguém de quem não sabia nada.
E
que tal se eu te batesse, gostavas?, disse eu, pondo-me de pé. Ainda te preocupavas
assim tanto comigo? O impulso de o castigar irrompeu em mim com a força destruidora
de uma casa a ruir. Posso muito bem dar cabo de ti e ninguém aqui virá
deter-me. Até ficam satisfeitos. Fechei o punho e brandi-o na direcção dele,
como que para confirmar que era o vilão de um drama escrito para mim por um
inimigo secreto, a pessoa que me traíra e provocara a minha prisão. As mãos do
jaina ergueram-se-lhe num repente para proteger a face, e nesse gesto percebi
que, além de o queimarem, o tinham agredido. Afastei-as à punhada e foi como se
uma corda se tivesse rompido cá dentro e eu estivesse a cair para fora de mim,
desamparado. Continuei a bater-lhe até lhe fazer espirrar o sangue da boca.
Logo,
porém, o horror ante aquilo em que me transformara fez-me soçobrar. Murmurei
uma desculpa e recolhi-me à cama, encostando os joelhos ao peito. Fechei os
olhos e durante horas não disse nada, tentando imaginar o que o meu pai
gostaria que eu fizesse, mas a voz dele desaparecera de dentro de mim. Ao
crepúsculo, ajoelhei-me junto ao meu companheiro de cela. Mata-me, murmurei. Não
posso. É-me proibido. Por favor, não percebes. Não poderia suportar ser
queimado ou obrigado a engolir água até sufocar. Se for torturado, poderei
revelar os nomes de pessoas que me ajudaram a mim e ao meu pai. Se morrer, a
minha noiva poderá casar com outro homem. Segurei-lhe no ombro. Asfixia-me de noite,
quando estiver a dormir. Dou-te tudo o que tenho por esse acto de bondade.
Digo-te aonde hás-de ir quando te libertarem, e poderás ir buscar os meus pertences
à minha irmã e ao meu tio.
Abanou
a cabeça. Afastei-o com um empurrão. Nessa noite, veio a rastejar deitar-se a
meu lado. Tomou-me a mão e apertou-a com força. Perdoa-me ter-te falhado,
murmurou. Mil perdões. Empurrei-o, mas ele agarrou-se a mim com força. Era
muito mais forte do que eu pensava. Por mim, tinha a certeza de que a
persistência dele era sinal de loucura, mas um sinal abençoado, pois assim
ficávamos em pé de igualdade nesse período que passaríamos juntos.
Ficámos
calados. Recordei a minha irmã aos quatro anos, com os olhos reluzentes de alegria;
dentro do cesto que lhe estendia estava uma borboleta que apanhara, não do tipo
que o jaina dissera, mas outra, escarlate e dourada. Adejando, foi pôr-se na
borda do cesto e flectiu as asas, refulgindo ao sol como um fragmento de
vitral. A minha irmã pôs-se a rir quando me viu cheirá-la. Quando a borboleta
levantou voo, ergueu as mãos e gritou de alegria. De pé por trás dela, pus-lhe
as mãos nos ombros, pesando-lhe com o meu amor, como aprendera com Nupi, a
nossa cozinheira e criada. Tinha a certeza de que ficaríamos sempre juntos. O
jaina acariciou-me a face. Difusamente, sabia que estava a pedir-me os meus
pensamentos. Ou, então, se calhar, a solidão em que vivera durante um ano
levava-me a querer acreditar que todos os gestos dele eram um convite a que
falasse do meu passado. A borboleta que apanhei não era do tipo que disseste,
confessei. E não a matei. Apenas queria mostrá-la à minha irmã. E cheirá-la,
embora agora isso pareça muito estranho. Pôs-se a rir docemente. Virei-me de
lado para ele. Sentia a sua respiração húmida contra a face. Parecia-me o vento
de Deus que me faltara. A escuridão da nossa cela não me permitia ver mais do
que as formas esfumadas da minha imaginação, mas acreditava que ele estava a
espreitar para algo muito fundo dentro de mim. Senti a inquirição como uma
pedra no peito. Apeteceu-me abraçá-lo, mas sabia que começaria a soluçar se o fizesse».
In
Richard Zimler, Goa ou O Guardador da Aurora, 2005, Gótica 2000, Difel, 2005,
ISBN 978-972-792-145-0.
Cortesia de
Gótica/Difel/JDACT