sábado, 11 de fevereiro de 2017

Joana. A Louca. Linda Carlino. «As febres altas haviam baixado graças à insistência dela em que tomasse todas as gotas do remédio, uma mistura de urtiga, fúnquia, aipo e pimenta. Felizmente para Joana, ainda precisava de cuidados de enfermagem»

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«(…) A guerra de orgulho que empreendera contra a rainha francesa, e que causara uma partida apressada, teve como consequência uma profunda desarmonia, que os difíceis meses que se seguiram nada ajudaram a resolver. Chuvas torrenciais e tempestades de granizo e neve tornaram a sua passagem por França uma infelicidade total. Todavia, ainda faltava o pior. Para se prepararem para a viagem através dos Pirenéus, todas as suas posses e todos os seus haveres tinham de ser transferidos das enormes carroças puxadas por bois para o dorso de mulas espanholas. Utensílios de cozinha, faqueiros, mobílias, acessórios e roupas tiveram de ser organizados em pequenos fardos fáceis de equilibrar. Isto foi levado a cabo enquanto os céus se desfaziam numa chuva gelada e ininterrupta que lhes dificultava todos os movimentos. Utensílios de prata e ouro enlameados, protegidos por palha encharcada, eram embrulhados em panos igualmente encharcados. Caixotes e arcas escorregavam das mãos enlameadas e caíam em poças enlodadas, espalhando normalmente o seu conteúdo; alguns artigos perdiam-se para sempre, outros arranjavam novos donos. Finas tapeçarias de seda enroladas em protecções à prova de água dependuravam-se, quais cadáveres, sobre o dorso das mu1as, pingando desconsoladamente. O mau humor desgastava-se e pragas de frustração juntavam-se aos gritos angustiados dos animais, igualmente infelizes por fazerem parte daquele caos.
Um a um foram-se aprontando, juntando-se ao longo comboio que iria chafurdar na direcção dos desfiladeiros das montanhas. À frente seguiam Joana e Filipe com os seus escudeiros, todos embrulhados em peles, lenços e capas à prova de água, uma longa coluna deprimente, arrastando-se numa viagem de pesadelo, através de trilhos de cabras, batalhando contra ventos cortantes e tempestades de neve ofuscantes. Misericordiosamente, chegaram, por fim, vivos e de boa saúde a Espanha, apesar de totalmente exaustos e infelizes. Houve outros atrasos: esperar enquanto se procuravam carroças novas nas aldeias da região, esperar pela reparação de estradas e pelo reforço de pontes a fim de aguentarem cargas pesadas. Em cada paragem de descanso, os comités de boas-vindas honravam-nos com festas de um luxo espanhol até então desconhecido, por vontade da frugal rainha Isabel, num esforço para impressionar o genro, mas que poucos efeitos tinha. Estava tudo tão longe dos planos idílicos que Joana alimentara na Flandres havia tantos meses. O mando não se mostrava impressionado com o seu país; na verdade, encontrara pouco que lhe agradasse e muito que o ofendia, queixando-se bastante. Estava-se em Abril e Toledo, onde ia ter lugar a cerimónia do juramento, encontrava-se apenas a duas léguas de distância. Joana encontrava-se sentada no chão, num grande almofadão bordado à mão, nos aposentos de Filipe. Embora o livro de horas estivesse aberto, ela mostrava-se constantemente alerta em relação a qualquer som vindo do doente, desejando ardentemente que ele acordasse. Gostava de lhe servir de enfermeira, de inundar com a sua devoção o amado marido, o qual havia apenas uns dias fora atingido por um grave ataque de sarampo. Com o livro pousado nos joelhos, lia distraidamente, Deus in auditorium meum intende..., mal observando os pastorinhos e os anjos agrupados na iluminura da letra D, e os animaizinhos que se escondiam por entre a folhagem que bordejava a margem da folha.
Sim, é esta a causa desta doença, murmurou para o livro, Deus queria que passássemos algum tempo juntos, livres do domínio de Busleyden e da sua maligna influência; só nós dois, aprendendo a amar-nos de novo, como no início. Contudo, isso era ir longe demais, pois sabia que Filipe nunca a amaria, pelo menos da forma como ela o amava; mas desde que ele permitisse o seu amor, seria suficiente. O pior da doença já passara. As febres altas haviam baixado graças à insistência dela em que tomasse todas as gotas do remédio, uma mistura de urtiga, fúnquia, aipo e pimenta. Felizmente para Joana, ainda precisava de cuidados de enfermagem: dar atenção aos pontos que lhe faziam comichão, a tosse terrível e aqueles olhos maravilhosos ainda doridos. De detrás do pesado brocado dourado ouviu-se um gemido, seguido por um ataque de tosse. Joana fez sinal aos dois médicos de pé junto à janela que ficassem onde estavam, que nada fizessem, pois ela trataria de Filipe. Pôs o livro de lado e correu a fechar parcialmente as persianas antes de abrir as cortinas da cama. Ao remover a compressa calmante dos seus olhos, passou ao de leve os lábios sobre a sua testa». In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT