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Em suma, não foi uma grande vida. E, com cinquenta anos completos, chegou-me o
convite de Simei. Por que não? Enfim, valia a pena tentar mais aquela.
O
que faço agora? Se ponho o nariz para fora, me arrisco. Melhor esperar aqui, no
máximo estão lá fora esperando que eu saia. E eu não saio. Na cozinha há vários
pacotes de biscoito de água e sal e latas de carne. De ontem à noite também
sobrou meia garrafa de uísque. Pode servir para ajudar a passar um dia ou dois.
Despejo duas gotas (e depois talvez outras duas, mas só à tarde, porque bebida
de manhã atordoa) e tento voltar ao início dessa aventura, sem necessidade
nenhuma de consultar a disquete porque lembro tudo, pelo menos por
enquanto, com lucidez. O medo de morrer dá alento às lembranças.
Segunda-feira,
6 de Abril de 1992
Simei
tinha a cara de um outro. Quero dizer, nunca me lembro do nome de quem se chama
Rossi, Brambilla e Colombo, ou mesmo Mazzini ou Manzoni, porque tem o nome de
outro, só lembro que teria o nome de outro. Pois bem, da cara de Simei não era
possível lembrar porque parecia a cara de alguém que não era ele. De facto, ele
tinha a cara de todos. Um livro?, perguntei-lhe. Um livro. As memórias de um
jornalista, o relato de um ano de trabalho para preparar um jornal que nunca
sairá. Por outro lado título do jornal deveria ser Amanhã, parece um
lema para os nossos governos: cuidamos disso amanhã. Portanto o livro deverá
chamar-se Amanhã: ontem. Bonito, não? E quer que eu o escreva?
Por que o senhor não o escreve? É jornalista, não? Pelo menos, visto que está em
vias para dirigir um jornal... Ser diretor não quer dizer saber escrever? Ser
ministro da Defesa não quer dizer saber atirar uma granada. Naturalmente que, durante
todo o ano que vem, discutiremos o livro dia após dia, terá de lhe pôr o
estilo, a pimenta, mas as grandes linhas controlo as eu. Quer dizer que o livro
será assinado pelos dois, ou como entrevista de Colonna e Simei? Não, não, caro
Colonna, o livro vai ser publicado com o meu nome, o senhor, depois de
escrevê-lo, deverá desaparecer. O senhor, sem querer ofender, vai ser um nègre.
Dumas tinha um, não entendo por que eu não possa ter. E por que escolheu a mim?
Porque o senhor tem dotes de escritor...
Obrigado.
…, mas nunca ninguém reparou. Obrigado, mais uma vez. Se me permite, até agora
escreveu apenas para jornais da província, andou a fazer fretes culturais
nalgumas editoras, escreveu um romance para outra pessoa (não me pergunte como,
mas ele veio parar nas minhas mãos e funciona, tem ritmo) e, com os seus cinquenta
anos, veio correndo quando ficou sabendo que eu talvez tivesse um trabalho para
lhe dar. Portanto, sabe escrever e sabe o que é um livro, mas vive mal. Não
deve sentir-se envergonhado. Eu também, se estou para dirigir um jornal que nunca
vai sair, é porque nunca fui candidato ao prémio Pulitzer, dirigi apenas um semanário
desportivo e uma revista mensal só para homens, ou para homens sós, veja lá...
Poderia
ter dignidade e recusar. Não o fará, porque lhe ofereço seis milhões por mês
durante um ano, por fora. É muito para um escritor falhado. E depois? Depois,
quando me entregar o livro, digamos no prazo de seis meses a partir do término
da experiência, outros dez milhões, a pronto, em dinheiro. E, esses, vão sair
do meu bolso. E depois? E depois é com o senhor. Se não gastar tudo em
mulheres, cavalos e champanhe, terá ganho, em um ano e meio mais de oitenta
milhões livres de impostos. Poderá ficar calmamente a olhar para o ar. Deixe-me
ver se entendi. Se me dá seis milhões, sabe-se lá com quantos vai ficar,
desculpe, além disso haverá outros redactores, e os custos de produção, impressão
e distribuição, e diz-me que alguém, um editor, suponho, está disposto a pagar
durante um ano esta experiência para depois não fazer nada com ela?
Eu
não disse que não vai fazer nada com ela. Ele vai ter seu retorno. Mas eu não,
se o jornal não sair. Naturalmente não posso excluir a possibilidade de no fim
o editor decidir que o jornal vai sair de verdade, mas nessa altura o negócio
vai ficar grande e eu me pergunto se ele ainda vai querer que eu cuide dele.
Portanto, eu me preparo para o facto de, passado esse ano, o editor decidir que
a experiência já deu os frutos esperados e que ele pode fechar a loja. Assim eu
me preparo: se tudo for por água abaixo, publico o livro. Vai ser uma bomba e render-me-á
uma boa quantia em termos de direitos de autor. Ou, então, mas falo por falar,
alguém não deseja que o publique e dá-me um xis. Livre de impostos». In
Umberto Eco, Número Zero, 2015, tradução de José Vaz Carvalho, Gradiva
Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.
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Gradiva/JDACT