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«Talvez
a intenção de Yeshua fosse simplesmente instalar-se no meu sonho como forma de juntar
os nossos dois caminhos. Ao fim e ao cabo, numa idade ainda muito vulnerável, ele
tivera de carregar o fardo de tudo aquilo que não se atrevia a revelar sobre o seu
mundo interior e precisava de um companheiro que lhe ouvisse as confissões sem o
julgar com severidade ou trair os seus segredos, e que estivesse disposto a atravessar
a pé com ele as águas mais lodosas e traiçoeiras da Torá. Porém, e dado o seu conhecimento
de tudo o que permanece escondido dos olhos dos restantes, talvez ele tenha
querido sugerir que criou o meu sonho e o colocou na mente adormecida do rapazinho
de oito anos que eu fora. Suponho que até seja possível que tenha querido fazer-me
crer que recuara no tempo vinte e oito anos e o implantara em mim, de forma a parecer
que eu, já em miúdo, fora capaz de profetizar os acontecimentos mais traumáticos
da minha idade adulta. Se eu acreditasse que ele conseguira prever todo o âmbito
e toda a forma de que se revestiria não só a vida dele como a minha, então, também
teria de aceitar a inquietante noção de que ele já sabia há algum tempo onde a
nossa jornada acabaria. Sabia que eu seria forçado a fugir com os meus filhos de
um lar afogado em sangue, perseguido tanto pelo faraó como por Zadok, apertando
nos meus braços trémulos a sua derradeira dádiva para mim. Onde morreres também
eu morrerei, e aí serei sepultada. Foi a promessa feita por Rute, a Moabita,
à sua sogra, Naomi, e, embora a fidelidade da jovem sempre me tivesse comovido,
foi só quando murmurei as suas palavras de mim para comigo, no topo de uma
colina estéril, enquanto o meu olhar se estendia por sobre o braço transversal da
cruz de Yeshua e abarcava tudo o que a partir daí nunca viria a acontecer, que me
apercebi de que era bem possível que ela considerasse um acto de bondade o facto
de o Senhor pôr termo à sua vida.
Não
gostaria de pensar que Yeshua me introduziu com cuidado, e ao longo de décadas,
na intricada teia dos seus planos, simplesmente para no fim a puxar até ao último
fio e deixar-se ficar, nu e destroçado, perante os seus executores. E, não apenas
por causa das décadas de esperança que eu depositara nele. Para dizer a verdade,
resisto a essa ideia porque descobri que não constitui qualquer consolo saber que
há homens que conseguem fazer o que parece impossível a todos nós, feitos que desafiam
qualquer tentativa de compreensão. Cuidado com os homens que não veem nenhum
mistério quando olham para o seu reflexo. Foi o meu pai que me disse isto. Falava
de um tirânico prefeito romano desse tempo, mas acreditava que todos nós somos mudados
para melhor, tornamo-nos mais humildes e misericordiosos, no mínimo, quando
reconhecemos que a nossa identidade tende a escapar-nos de cada vez que lutamos
para a apanhar. E se o eu que dirige
as nossas acções não for fixo e permanente, então, como poderemos alguma vez
ter a certeza de quem somos e do que Deus nos pediu para fazer? Agora receio
que os mais ardentes seguidores de Yeshua e eu acabemos por nos tornar inimigos,
porque vim a saber que muitos deles ouvem o clangor do shofar da divindade
em cada sílaba que pronunciou. Seria ele realmente um faraó ou rei judeu, como queriam
fazer-nos acreditar? Se ao menos eu tivesse entrevisto a possibilidade de os romanos
virem a prendê-lo... Então, tê-lo-ia pressionado a fugir comigo da nossa terra
natal, e nunca teria aceitado um não
por resposta. Mas no final, meu neto adorado, não houve tempo para súplicas nem
discussões, o que, mais uma vez, é sinal de que nunca estamos verdadeiramente em
casa neste mundo. Embora talvez o próprio Senhor desejasse ter mais tempo. Seria
heresia supor que sim? Nesse caso, também já não me importa; três décadas de
saudade e arrependimento deram-me o direito de te falar com franqueza.
Querido
Yaphiel, para poder começar a escrever nesse pergaminho que agora tens nas mãos,
comprei hoje de manhã tinta numa tenda do teu mercado favorito, o preferido dos
vendedores de flores da nossa ilha e que se anima de vida todas as madrugadas, ao
lado do templo de Atena. Quando cheguei a casa tranquei-me no meu quarto de orações
secreto. consegues ver-me lá? Neste preciso momento, estou sentado no mosaico de
Yeshua, sob o terebinto que cresce no centro do meu mundo. Imagina a ponta do
meu cálamo a desenhar estas palavras. Imagina-me a tentar falar-te sobre assuntos
que nunca poderão inscrever-se com facilidade ou desenvoltura num rolo de papiro.
Imagina-te de pé no ponto final de cada frase. Estou decidido a não deixar nada
por dizer, porque mereces que te dê uma explicação cabal sobre o motivo por que
fui tão incrivelmente indelicado contigo no outro dia. E também porque me apercebi
de que chegou finalmente a altura de te falar acerca do teu lugar na minha vida,
há tanto tempo mantido em segredo, o que, por sua vez, significa que tenho de te
falar sobre o homem que quiseste conhecer da última vez que estivemos juntos. De
Yeshua. Ele é o nosso alef e o nosso tav, e todas as letras entre
estas duas, porque ele é o autor da dádiva, aquele que nos reuniu, se conseguir
ganhar coragem para tal, pedir-te-ei igualmente um favor que não posso pedir a mais
ninguém. Um aviso: o teu avô não é o homem que julgavas que era. Significará isso
que não és bem o jovem que sempre pensaste ser? Talvez. Só tu, meu filho, poderás
ter a certeza. Pede e o teu desejo será concedido. Procura e encontrarás. Bate
à porta e ela abrir-se-á para ti. In
Yeshua ben Yosef
In Richard
Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN
978-972-004-854-7.
Cortesia
de PEditora/JDACT