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Isaura sempre gostava daqueles momentos em que, antes de curvar a cabeça sobre a
máquina, deixava correr os olhos e o pensamento. A paisagem era sempre igual, mas
só a achava monótona nos dias de verão teimosamente azuis e luminosos em que tudo
é evidente e definitivo. Uma manhã de nevoeiro como esta, de nevoeiro delgado
que não impedia de todo a visão, cobria a cidade de imprecisões e de sonho. Isaura
saboreava tudo isto. Prolongava o prazer. No rio ia passando uma fragata, tão maciamente
como se flutuasse numa nuvem. A vela vermelha tornava-se rosada através das gazes
do nevoeiro. Súbito, mergulhou numa nuvem mais espessa que lambia a água e, quando
ia surdir de novo nos olhos de Isaura, desapareceu atrás da empena de um prédio.
Isaura suspirou. Era o segundo suspiro nessa manhã. Sacudiu a cabeça como quem
sai de um mergulho prolongado, e a máquina matraqueou com fúria. O tecido
corria debaixo da patilha e os dedos guiavam-no mecanicamente como se fizessem parte
da engrenagem. Aturdida pelo barulho, pareceu a Isaura que alguém lhe falava.
Deteve a roda bruscamente e o silêncio refluiu. Voltou-se para trás: o quê? A mãe
repetiu: não achas que é um bocadinho cedo? Cedo? Porquê? Bem sabes... O
vizinho... Mas, minha mãe, que hei de fazer? Que culpa tenho eu de que o vizinho
de baixo trabalhe de noite e durma de dia? Ao menos, podias esperar até mais
logo. Não gosto nada de questões com a vizinhança... Isaura encolheu os ombros.
Pedalou outra vez e disse, elevando a voz acima do ruído da máquina: e a mãe
quer que eu vá à loja pedir que esperem, não é?
Cândida
abanou devagar a cabeça. Era uma criatura sempre perplexa e indecisa, que sofria
o domínio da irmã, mais nova que ela três anos, e com a consciência aguda de que
vivia à custa das filhas. Desejava, acima de tudo, não incomodar ninguém, passar
despercebida, apagada como uma sombra na escuridão. Ia responder, mas, ao ouvir
os passos de Amélia, calou-se e voltou à cozinha. Entretanto, Isaura, lançada no
trabalho, enchia a casa de barulho. O chão vibrava. As faces empalidecidas coloriam-se-lhe
pouco a pouco e uma gota de suor começava a brotar-lhe da testa. Sentiu mais uma
vez que alguém se aproximava e abrandou. É escusado trabalhares tão depressa.
Cansas-te. Tia Amélia nunca dizia palavras supérfluas. Apenas as necessárias e não
mais que as indispensáveis. Mas dizia-as de uma maneira que aqueles que a ouviam
ficavam a apreciar o valor da concisão. As palavras pareciam nascer-lhe na boca
no momento em que eram ditas: vinham ainda repletas de significação, pesadas de
sentido, virgens. Por isso dominavam e convenciam. Isaura abrandou a velocidade.
Daí a
poucos minutos, a campainha da porta tocou. Cândida foi abrir, demorou-se
alguns instantes e regressou desorientada e aflita, murmurando: eu não dizia?...
Eu não dizia?... Amélia levantou a cabeça; Que é? É, a vizinha de baixo que vem
reclamar. Este barulho... Vai lá tu, vai lá tu... A irmã deixou a louça que
estava lavando, limpou as mãos a um pano e dirigiu-se à porta. No patamar estava
a vizinha de baixo. Bom dia, dona Justina. Que deseja? Amélia, em qualquer momento
e em qualquer circunstância, era a polidez em pessoa. Mas bastava-lhe carregar na
polidez para tornar-se terrivelmente fria. As pupilas pequeníssimas cravavam-se
no rosto que fitavam e provocavam uma impressão de mal-estar e de
constrangimento impossíveis de reprimir. A vizinha entendera-se bem com a irmã de
Amélia e estivera quase a concluir o que trazia para dizer. Aparecia-lhe agora um
rosto menos tímido e um olhar mais directo. Articulou: bom dia, dona Amélia. É
o meu marido... Trabalha toda a noite no jornal, como sabe, e só de manhã é que
pode descansar... Fica sempre aborrecido quando o acordam e eu é que tenho que o
ouvir. Se pudessem fazer menos barulho com a máquina eu agradecia...
Bem sei.
Mas a minha sobrinha precisa de trabalhar. Compreendo. Por mim, não me importaria,
mas sabe como são os homens... Sei, sei. E também sei que o seu marido não se preocupa
muito com o descanso dos vizinhos quando entra de madrugada. Que hei de eu
fazer? Já desisti de o convencer a subir a escada como gente. A figura longa e macilenta
de Justina animava-se. Nos seus olhos começava a brilhar uma pequena luz maligna.
Amélia terminou a conversa: esperaremos mais um bocado. Vá descansada. Muito obrigada,
dona Amélia». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011,
ISBN 978-972-212-441-6.
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