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Não era a mesma para todos, certamente, porque isso teria sido um engano
colectivo. Cada um recebia a sua com a certeza de que ninguém mais a empregava
para esse fim no universo inteiro e para lá dele. Belisa Crepusculario nascera
numa família tão miserável, que nem sequer possuía nomes para chamar aos
filhos. Veio ao mundo e cresceu na região mais inóspita, onde alguns anos as
chuvas se transformam em avalanchas de água que arrastam tudo e noutros não cai
nem uma gota do céu, o sol aumenta até ocupar o horizonte por inteiro e o mundo
torna-se um deserto. Até completar onze anos não teve outra ocupação nem
virtude senão sobreviver à fome e à fadiga dos séculos. Durante uma seca
interminável coube-lhe enterrar quatro irmãos mais pequenos e, quando
compreendeu que chegava a sua vez, decidiu começar a andar pelas planícies em
direcção ao mar, a ver se, na viagem, conseguia enganar a morte. A terra estava
escalvada, partida em gretas profundas, semeada de pedras, fósseis de árvores e
de arbustos espinhosos, esqueletos de animais, esbranquecidos pelo calor. De
vez em quando deparava com famílias que, como ela, iam até ao Sul seguindo a
miragem da água. Alguns tinham iniciado a caminhada levando os seus haveres ao
ombro ou em carrinhos de mão, mas mal podiam mover os próprios ossos e ao fim
de pouco caminhar acabavam por abandonar as suas coisas. Arrastavam-se
penosamente, com a pele feita couro de lagarto e os olhos queimados pela
reverberação da luz. Belisa saudava-os com um gesto ao passar, mas não parava,
porque não podia gastar as suas forças em exercícios de compaixão. Muitos
caíram pelo caminho, mas ela era tão teimosa que conseguiu atravessar o inferno
e, por fim, chegar aos primeiros mananciais, finos fios de água, quase
invisíveis, que alimentavam uma vegetação raquítica e que mais adiante se
transformavam em riachos e pântanos.
Belisa
Crepusculario salvou a vida e, além disso, descobriu a escrita por acaso. Ao
chegar a uma aldeia nas proximidades da costa, o vento pôs-lhe aos pés a folha
de um jornal. Pegou naquele papel amarelo e quebradiço, esteve longo tempo a
observá-lo sem adivinhar o seu uso, até que a curiosidade pôde mais que a
timidez. Aproximou-se de um homem que lavava um cavalo no mesmo charco turvo
onde ela saciara a sede. Que é isto?, perguntou. A página desportiva de um
jornal, respondeu o homem sem dar mostras de espanto pela sua ignorância. A
resposta deixou a rapariga atónita mas não quis parecer atrevida, limitou-se a
perguntar o significado das patinhas de mosca desenhadas sobre o papel. São
palavras, menina. Aí diz-se que Fulgencio Barba derrubou o negro Tiznão ao
terceiro assalto. Nesse dia Belisa Crepusculario soube que as palavras andam
soltas, sem dono, e que qualquer um com um pouco de manha pode agarrá-las para
as vender. Considerou a sua situação e concluiu que para além de se prostituir
ou empregar-se como criada nas cozinhas dos ricos, poucas eram as ocupações que
podia desempenhar. Vender palavras pareceu-lhe uma alternativa decente. A partir
desse momento exerceu tal profissão e nunca se interessou por outra. A
princípio oferecia a sua mercadoria sem suspeitar que as palavras podiam também
escrever-se fora dos jornais. Quando soube isso calculou as infinitas
perspectivas do negócio, com as suas poupanças pagou vinte pesos a um padre
para lhe ensinar a ler e escrever e com os três que lhe sobraram comprou um
dicionário». In Isabel Allende, Contos de Eva Luna, 1987, Porto Editora, 2016, ISBN
978-972-004-095-4.
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