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Erec e Enide são dois pedaços de carne baptizados, sentenciou Estremoz: tem um
grande mérito que te atrevas com esses dois adolescentes, dois marmelos que
Chrétien Troyes inventou para expor uma fábula sobre o amor segundo as chaves do
século XII. Ou a senhora ia para a cama com o seu guarda-costas, caso de Guinevere
e Lancelote, ou iam os amantes jovens fazer garganteios para as florestas desfolhadas.
Atrevo-me a lembrar-te que nem Erec nem Enide foram duas invenções de Chrétien Troyes
e que toda a mitologia arturiana parece nascer de si própria. embora se sustente
a historicidade da maioria das personagens, de Artur por exemplo, em relatos como
Sueño de Rhonabwy, onde aparece metade deus metade guerreiro. Já Rhys, demonstrou
que Artur é a resultante lendária de diferentes chefes militares por vezes medievais
e pode-se mais ou menos rastrear essa historicidade nos outros cavaleiros da Távola
Redonda. Erec está inserido na tradição celta e assim se configurou o Gereint Mabinogiou.
Geoffrey Mobinogiou descreve Artur como um guerreiro contra Hades, não contra Roma.
Figueiro converte-se num director de orquestra sorridente e dá a entrada a Myrna,
mas nem ela sabe a quê.
Hades,
Hades..., recorda, Myrna. Encontrei nas moradas de Hades, à direita, uma fonte...
Myrna descobre o que lhe pede Figueiro e a duas vozes recitam a tabuinha órfica
de Petélia que está no British Museum.
Encontrei
nas moradas de Hades, à direita, uma fonte,
e junto
dela erguido um branco cipreste.
Desta
fonte não te aproximes nem sequer um pouco
encontrarás
outra que da Lagoa da Memória
faz brotar
a sua fresca água. Diante estão os guardiães
diz-lhes:
sou filha da Terra e do Céu estrelado,
a minha
linhagem também é celeste. Vós já o sabeis
estou
seca de sede e morro. Pelo que dai-me já
a água
fresca que flui da fonte da Memória...
Figueiro
e Myrna estão emocionados como só o estariam um tenor e uma soprano no final de
um dueto e comentam que era a reivindicação mais melancólica da Memoria que nos
tinha legado a literatura antiga, e apoiado por este triunfo emocional,
Figueiro crê chegado o momento oportuno de voltar ao rei Artur para reforçar: que
Artur fosse, já, uma personagem sem dúvida histórica, não retira a aura lendária
que envolve tudo o que diz respeito ao arturiano. De tudo isso emana um encantamento
simbólico e ritual situável num território igualmente imaginário.
Não
discordo desta afirmação do português, mas parece-me absurdo nesta altura da minha
vida e das indagações sobre a chamada matéria da Bretanha, que ainda
insistamos na historicidade de Artur e dos seus cavaleiros. A matéria da Bretanha
tem valor por si mesma e em si mesma, como uma religião ou uma cultura, e insistir
nas suas historicidades faria parte de um dos cinco milhões de inutilidades em
que se poderia empenhar qualquer inteligência com vontade de perder tempo. Era já
um passo em frente que um marxista como Figueiro d’Amaral assumisse o simbólico
como um valor per se e abandonasse o neopositivismo ao Círculo de Viena,
um empirismo logicista ou materialismo dialéctico para tirar a magia à demanda do
Santo Graal ou aos jogos de recuperação amorosa de Erec. Pois bem, Myrna põe-se
neopositivista e arremete contra o idealismo que sobrevive como prova convincente
para aceitar como se fosse certa a lenda arturiana». In
Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN
972-29-0651-8.
Cortesia de Difel/JDACT