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É que a lenda arturiana é uma certeza em si mesma, como a religião católica ou
a terapia à base de pílulas de alho. A Myrna quer brigar comigo e exibe a sua
expressão mais desafiante enquanto me diz: eu creio como Hume, insisto, Hume,
David Hume, meu compatriota, que só são válidos os raciocínios experimentais
relativos a factos ou à experiência. Citar Hume nesta altura é como citar Santo
Agostinho a propósito do Bem e do Mal. Todas as tuas dúvidas racionalistas rendem-se
perante o teu filho adoptivo, Parsifal, o demandador do Santo Graal. - E quem é
que te disse a ti que verdade é que estou à procura quando ironizo sobre o
evidente, a cristandade do mito do Santo Graal? Ainda que seja por vezes tão
idealista, estou de acordo com Duby quando diz que o historiador destas épocas
avança às cegas e algumas das suas perguntas permanecem sempre sem resposta. Isso
já o disseram Agamémnon e o se porqueiro. Não é um demérito, pelo contrário. O
fascinante do passado e muito especialmente da Idade Média e tudo o que não
sabemos. Porque é que mentes a ti própria? O que fascina é a loucura do
cavaleiro à procura da transcendência, não o que essa enteléquia revela das
condições subjectivas e objectivas comprováveis no século XII ou XIII. Quando
eu me meti no romanismo a visão erudita dominava tudo, acumulativa de grandes
ou pequenos desvelos e, agora, assume-se, pelo contrário, maioritariamente,
como um avant-la-lettre do realismo mágico. Isso explicaria, por
exemplo, o trabalho de Vargas Llosa sobre uma obra capital do cavalheirismo, Tirant
lo Blanc. que, a propósito, foi assessorado pelo teu chefe, Martín de
Riquer.
Há
quarenta anos que Riquer não é o meu chefe, mas sim meu mestre. E assim
continua. Não é insultante o tom de Myrna, mas sim completamente irónico,
sobretudo a última afirmação dirigida ao Prémio Carlomagno e ao homem mais
homenageado, pelo menos, das ilhas de San Simon, e assim o entendem os outros
porque se riem da graça e conseguem dissipar toda a sombra de oposição na nossa
sobremesa, que para meu desespero se alonga até que aparecem os primeiros
bocejos, entre eles os meus, invasores, sem misericórdia para com o desejo que
os meus olhos enviam a Myrna. Basta já de dizer disparates. Deixa que este par
de mentecaptos vá para a cama. E quando parece evidente que vão para a cama,
procuro na minha carteira a pílula de Viagra e engulo-a com a ajuda do resto de
um excelente vinho de Gytian. Há que controlar o açúcar no sangue, justifico-me
e Myrna aplaude. Finalmente descobrimos onde é que o emérito doutor Júlio
Matasanz guarda o açúcar.
Despedimo-nos
os quatro à medida que chegávamos aos nossos quartos, Myrna no primeiro andar,
pelo que digo em voz alta: tens cá uma sorte. Eu estou no trezentos e um. Uma
suíte mas lá em cima, lá em cima. Os outros descolam e entro nos meus
aposentos, tentando adivinhar os efeitos que a pílula pudesse ter causado na
minha psique ou no meu chouriço, e como a psique parece excitada, o chouriço permanece
em repouso e à espera, talvez, da provocação da presença física de Myrna. Da
presença física de uma mulher quase sessentona que já não encaixava no formato
da exaltante Myrna War Breast de há trinta anos? Não quero ficar a sós
com esta evidência, não fosse os efeitos do Viagra reagirem ao contrário, e visto
quanto antes o pijama à espera que Myrna toque à minha porta, enquanto a
recordo anos atrás em sequências estimulantes que não chegam à minha memória
com a fluidez esperada, pelo contrário, aparecem como ruídos outras situações
como aquela em que Myrna muito bêbeda começou a mi… quando eu tentava penetrá-la
por detrás e no dia seguinte, morta de vergonha, não assistiu às sessões do
congresso. Já passou um quarto de hora desde que tomei a pílula de Viagra e
começa a ser urgente que Myrna War Breast se apresente com toda a sua
matéria da Bretanha, e assim o interpreto quando oiço toques discretos na minha
porta. Não posso evitar levar a mão ao sexo para verificar se prometia uma alta
madrugada sem piedade e noto-o quase a fazer recordar os seus melhores
momentos, mas ao abrir a porta de sorriso feito sai-me o Estremoz com cara de
delinquente biológico. Desculpa que te incomode, mestre, mas não terás por aí algum
digestivo ou sais de frutos? Os mariscos caíram-me mal nas úlceras e o senhor
da recepção disse que ainda não reabasteceram a farmácia. Até amanhã». In
Manuel Vázquez Montalbán, Erec e Enide, 2002, Difel, Algés, 2003, ISBN
972-29-0651-8.
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