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Ano
de 1229. Basílica Menor de Seligenstadt
«A
Aurosa hesitava, sufocada por uma noite impenetrável. Uma noite que iria durar eternamente.
Na basílica carolíngia, num aposento longe do dormitório, Konrad von Marburg, encostado
à janela, observava a paisagem vestida de escuro, imóvel como um cão perdigueiro
após ter farejado a presa. Esperava qualquer coisa, um sinal, uma visão, e no seu
coração não sabia se ela se iria manifestar aos seus olhos ou se no mais íntimo
da sua alma. Já intuíra, todavia, do que se tratava. Depois de trinta anos de orações
e de exorcismos, estava certo de que não se enganava. Percebera-o como um som
saído das trevas, o grito de um corcel. E estava pronto para o combate. Semicerrou
as pálpebras desprezando o ar gélido que lhe açoitava o rosto. O vento norte sibilava,
furioso, pelos campos e pelas ruas. Carícias de uma natureza madrasta, dádivas
de um Inverno que pressionava a Turíngia e a Renânia como um torno gélido. Aí via
uma advertência, uma antecipação do que o esperava. Porque ele, Konrad von
Marburg, conseguira descobrir a trama do Maligno nos feitos humanos.
Fiat
voluntas tua,
ruminou, inclinando ligeiramente a cabeça. Fechou as portadas e voltou para os
seus aposentos envoltos em penumbra. Em cima de uma escrivaninha esperavam-no duas
cartas, uma escrita em alemão, a outra em latim. Escrevera-as durante a noite, quase
de uma penada, e deixara-as em cima do tampo para que a tinta secasse. A situação
era deveras grave. Dentro de algumas horas um estafeta partiria para as entregar.
A primeira destinava-se ao landgrave da Turíngia, o senhor daquelas terras;
a segunda, a Sua Santidade em pessoa, o papa Gregório IX. O conteúdo era quase o
mesmo, tendo apenas ligeiras variações quanto às fórmulas de tratamento e encómios.
Konrad sentou-se à escrivaninha e pegou na carta escrita em latim para a reler à
luz de uma vela. Tinha consciência de ter viciado o texto com alguns germanismos,
mas sabia que não devia preocupar-se com isso. Quando ainda não era papa e
respondia pelo nome de Ugolino Anagni, Gregório IX viajara como legado
apostólico pela Germânia, pelo que estava perfeitamente habilitado a compreender
a língua alemã. O texto dizia:
“Em nome
de Nosso Senhor Jesus Cristo. A Sua Santidade o papa Gregório, bispo da Igreja
Católica e servo dos servos de Deus, o abaixo-assinado Konradus Marburc, predicator
verbi Dei, reporta os resultados das suas indagações sobre a corrupção herética
que infecta a Germânia. No mês de Janeiro do ano corrente, dirigi-me à diocese de
Mogúncia para visitar a casa de um clérigo suspeito de heresia chamado Wilfridus,
e nesse lugar encontrei traços inequívocos das evocações do Maligno. Tendo tomado
nota dos muitos indícios de necromancia que pude identificar, mandei prender o clérigo
e por fim submeti-o a um interrogatório. Apesar de me encontrar frente a um religioso
e não a um simples laico, levei a cabo a minha missão com firmeza. O interrogatório
provou que mentia, como é habitual fazer quem pretende esconder a própria culpa,
depois acabou por confessar que venerava uma trindade herética mais antiga do que
a cristã, que suspeito ser Lúcifer no momento de se antepôr à Santíssima Trindade.
Como prova de tais suspeitas, Wilfridus segurava na mão direita o sinal do pacto
com o Maligno, que por decência e temor a Deus me recuso a descrever a Vossa Santidade.
Mais grave ainda, o interrogado confessou ter sido iniciado neste culto blasfemo
por um magíster de Toledo. Descreveu-o como um homem alto, magro, vestido de escuro,
mas jurou que não sabia o seu nome. Eu, porém, com base nas indagações precedentes,
sei muito bem de quem se trata. É o Homo Niger, o Hontem Negro que frequentemente
se manifesta aos heréticos durante os seus torpes conciliabos. Face a estas evidências,
peço licença para alargar as indagações a sul da coroa alpina, onde, de acordo
com o interrogatório, se esconderá a seita mais importante fundada pelo magíster
de Toledo. E uma vez que os sequazes desta seita se entregam às mais aberrantes
heresias, ou mesmo ao culto de Lúcifer, peço que estes Luciferianos sejam fulminados
pelo anátema e castigados pela vara da Santa Igreja Romana”.
Ouviu-se
um ruído, um arrastar de sandálias proveniente do corredor próximo. Konrad
levantou os olhos do papel e ficou à espera, até que viu um homem aparecer à porta.
Era um franciscano com uma grande tonsura emoldurada por uma auréola de cabelos
eriçados, com o rosto iluminado por dois olhos de asceta. Gerhard von Lützelkolb,
meu amigo. Von Marburg levantou-se e abriu os braços. Estava mesmo a pensar nas
vossas indagações. O frade fez uma ligeira vénia e inspirou profundamente várias
vezes seguidas. Devia ter vindo a correr. Demorei, magíster. Perdoai-me. Magíster.
Konrad era chamado magíster havia cerca de dois anos, desde que o Santo Padre lhe
confiara uma missão de grande relevância, um sinal indubitável de afeição, mas,
simultaneamente, um terrível fardo. Até então, jamais alguém fora encarregado
de investigar a heresia com a finalidade precisa de a estripar a qualquer preço».
In
Marcelo Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor,
Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
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