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O Algarismo e o Número
«(…) O bispo de Chartres estava furioso. Entrou na catedral,
em cujas abóbadas continuavam a trabalhar vários operários que estavam a
cobri-las com o telhado, gritando como um possesso. Chamava em altos gritos o
mestre João Ruão, que subira ao alto dos andaimes para dirigir a colocação de
algumas peças do telhado. Daquela altura quase não se conseguiam ouvir os
gritos do prelado, mas um operário trepou lá a cima à procura do mestre. Mestre
João, o bispo está lá em baixo. Entrou na catedral exigindo a vossa presença
imediata. Sabes o que quer? Não, mestre; apenas me ordenou que subisse para vos
vir buscar de imediato; parece muito zangado. Quer falar convosco sem demora. João
disse ao irmão Luís para continuar a dirigir o trabalho e desceu até ao chão
pelos andaimes. No meio da catedral, precisamente debaixo da chave da abóbada do
cruzeiro, o bispo de Chartres esperava por João. Eminência! João aproximou-se
do prelado, inclinou-se ante a sua presença e pegou na mão para lhe beijar o
anel episcopal, um enorme aro de ouro em que brilhava, cravado, um fabuloso
rubi escarlate. Disseram-me que me procurais. Assim é. Imagino que estais inteirado
da notícia, disse o bispo, dando como assente que João devia saber. A que
notícia vos referis, Eminência? A qual há-de ser, mestre, a que toda a gente
comenta: que o bispo de Reims ordenou que a sua catedral seja a maior do mundo.
Havia sete anos que tinham começado as obras daquele templo
e o bispo dera instruções ao mestre director para que a catedral de Reims fosse
a maior de França. Não era em vão, ali eram coroados os seus reis. Bem,
Eminência, a vossa está quase acabada, já não a podemos fazer maior,
lamentou-se João. Primeiro, Paris, a seguir Amiens, agora Reims. Superar-nos-ão
todos, todos. Qualquer bispo vai querer construir uma catedral maior do que a
nossa... Mas, acredite-me, Eminência, que nenhuma será tão bela; trabalharam
aqui os melhores artistas de França. E garanto-vos que não é apenas uma questão
de tamanho, como também de proporção e harmonia. Reparai, Eminência. A vossa
catedral está construída seguindo os mais belos modelos das relações matemáticas.
Esta catedral cresceu conforme a proporção das medidas humanas e vossa Eminência
já sabe que o homem foi criado por Deus à sua imagem e semelhança.
Olhai para a abside, disse João apontando para a cabeceira. Ali
está a cabeça do homem, aqui, no centro do cruzeiro, está o coração, no transepto
os braços e na nave as pernas. O homem como medida de todas as coisas à imagem
e semelhança de Deus. Além disso, Eminência, está a luz. Construímos a representação
do universo, não um universo opaco, mas sim transparente, cheio de luz, e Deus
faz-se presente neste templo a partir dessa mesma luz. Esta igreja torna
patente o esplendor de Deus, a sua verdade, com tudo aquilo que faz formosa a
natureza, mas que dá firmeza à razão. Esta catedral representa a fé na natureza
e no homem, uma fé em Deus, a quem coloca no centro do universo, enquanto o
homem ocupa o centro da natureza, o lugar que lhe corresponde por vontade
divina. Tudo isso já eu sei, mestre João, mas as catedrais dos nossos rivais
serão maiores, mais altas...
Nesse caso, também essa será a vontade de Deus, Eminência. O
bispo foi-se embora mais calmo. O que queria esse fátuo presunçoso?, pergunto
Luís, que acabava de descer do telhado, ao irmão João. Está aborrecido porque
noutras dioceses estão a construir-se catedrais maiores do que esta. Bom, isso
é inevitável. Haverá sempre alguém disposto a superar o que já foi feito; as
coisas costumam suceder assim. É verdade, irmão, ontem recebi uma visita. Era
um enviado do bispo de Bourges. Ali também estão a construir uma catedral. Um
dos mestres do tribunal que me examinou deu-lhe o meu nome. Ao que parece,
agradou-lhe muito a ideia de uma cabeceira com capelas destacadas para o exterior,
de planta semi-circular, e quer que para lá vá como primeiro-ajudante do mestre
da obra. Não te importas? Claro que não, irmão. És mestre arquitecto, um dos
melhores que conheço. De mim já não podes aprender nada. Agora és tu quem deve
ensinar, se bem que sem nunca deixares de aprender». In José Luís Corral, El Número de
Deus, 2004, O Número de Deus, O Segredo das Catedrais Góticas, tradução de
Carlos Romão, Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT