Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
Sem que alguém o tivesse percebido, o peregrino e o cão entraram na catedral e
fundiram-se numa coluna, duas sombras fantasmagóricas mais que as luzes
trémulas compunham para habitar a noite do templo. Dobrado no buraco,
Larramendi via o sujo pedreiro com a boca e o nariz tapados pela mão, enquanto
se dirigia como podia, de olhos esbugalhados e húmidos, para a saída. Já perto
do mestre de obras, fez sinal para que o deixasse passar. Entregou o archote e
ergueu-se, lívido como um cadáver, para voltar ao solo da catedral, ainda a
tossir. Larramendi ajudou-o a sair da cavidade, amparou-o com os braços e
sentou-o num banco. Em tantos anos de trabalho conjunto, nunca vira Nartallo
naquele estado. Lá fora a chuva não parava, como era hábito nos Invernos
galegos. Mas os emocionados habitantes da catedral compostelana não reparavam
nas gordas bátegas que se abatiam sobre o telhado e as janelas da catedral. Um
semicírculo de homens, curvados sobre o trabalhador, aguardava que este se
recompusesse. O que aconteceu, Nartallo?! Eu vi… Eu vi uma caixa aberta no
sepulcro… Havia algo lá dentro, pareciam ossos, explicava, a custo. Mas exalava
tanto fedor que quase morri…
Payá
respirou fundo e os olhos brilharam. Os pensamentos corriam vertiginosamente e
um sorriso vitorioso no rosto inteiro sublimava-lhe o gáudio interior: aquele
dia 28 de Janeiro de 1879 haveria de ficar gravado na história da cristandade
com vigorosas e bem desenhadas letras de ouro! Eu sabia… Eu sabia… Graças a
Deus…, murmurava, enquanto Nartallo recuperava da náusea. Enlaçado nos
pensamentos, o cardeal circulava nervosamente de um lado para o outro, com as
mãos atrás das costas, sobre o lajeado do templo. Agora só precisava de colocar
o plano em acção. Estava tudo previsto, caso conseguisse concretizar a pia
missão: provar cientificamente que o sacro corpo que aquela catedral guardara
durante tantos séculos era, sem margem para dúvidas, Santiago Maior, o filho do
Zebedeu. Quero ver a cara desses incréus! Dizem que não acreditam que aqui
repousam os ossos do nosso santo apóstolo?!, resmoneou, esfregando as mãos,
enquanto congeminava o que fazer a seguir. Labin, vai chamar don José Canosa!,
pediu, com uma piscadela de olho. Acreditando na tradição de que o túmulo se
encontrava debaixo do deambulatório da catedral compostelana, havia preparado a
estratégia ao pormenor: os peritos que analisariam os achados; os historiadores
que emitiriam o parecer; e, claro, as festas que haveria de organizar por tão
extraordinárias notícias.
Fora
grande a desilusão quando, nos primeiros dias, os trabalhadores apenas
descobriram uma cripta rectangular com dois compartimentos: um edifício
sepulcral romano com unguentários, lacrimatórios, um anel, colares e adornos femininos,
uma pedra de quartzo cor-de-rosa, um cavalinho de barro, brinquedo de uma criança
romana, moedas e várias peças de uso doméstico de vidro azulado. Mas do túmulo que
buscava…, nada! Agora, num ápice, a roda da fortuna girara para o fazer feliz! Quero
ver a cara do Canosa quando vir isto! Oh, se quero! Don Miguel rodopiava no próprio
murmúrio. E de alguns membros do cabido! Sempre a desconfiarem das ideias do cardeal!
Pela imaginação de Miguel Payá corria a imagem dos peregrinos a voltarem e a
abonarem os exauridos cofres do arcebispado. A culpa da carestia devia-se à
abolição da renda que os camponeses de Espanha e do norte de Portugal pagavam à
clerezia compostelana, o Voto de Santiago, instituído por Ramiro I, na
sequência da mítica batalha de Clavijo, a 23 de Maio de 844, quando Santiago
aparecera, providencial, em carne e osso, para mudar a sorte da peleja contra
os sarracenos. Por muitos e muitos séculos, as primícias das colheitas e das
vindimas passaram a pertencer à igreja de Compostela, nos territórios cristãos
defendidos e nos que a seguir se tomaram aos mouros. Naqueles fervorosos tempos
perdidos na bruma da História, Ramiro achara que era a mais que merecida
quota-parte devida ao apóstolo, nos despojos de guerra, pela forma como, de
espada em punho, este o ajudara a escorraçar os mouros.
Discretamente,
o delgado peregrino aproximara-se e sentara-se num banco, a poucos metros dos
acontecimentos. Olhava com atenção para os homens felizes e para o pedreiro convalescente.
Aconchegou-se num manto seco que tirara de um saco para se proteger do frio. O
seu coração também se alegrava, mas ninguém ali sabia da razão. Perante o
magnífico altar da catedral, de onde emanava um leve odor a bafio e a pó,
misturado com velas e incensos queimados, recordava episódios antigos e
esquecidos, que marcaram um tempo extraordinário no ocidente, no distante
século IV. Puxou Diógenes, o obediente cachorro, para si e fez-lhe sinal para
que se mantivesse aninhado ao seu lado. Como vos lembrastes de escavar aqui,
López? Senhor cardeal, de cada vez que cantávamos sobre este local a antífona Corpora Sanctorum in pace sepulta sunt,
olhava para a estrela no mosaico e para a abóbada, onde estão pintados os
atributos do apóstolo, incluindo a arca e a estrela. Alguma coisa isso quereria
dizer… Um sinal dos nossos antepassados… Que bela intuição, meu bom amigo! Agora,
importa decidir o que fazer: paramos por aqui ou continuamos os trabalhos e abrimos
o túmulo? Essa é uma boa questão, López Ferreiro… Deixa cá ver… O cardeal, com
o peso dos seus 67 anos, apertava as bochechas que lhe pendiam da cara larga,
enquanto pensava. O cheiro intenso do fumo das velas e archotes, misturado com odor
a petróleo dos candeeiros, não o incomodava, apenas a pouca luz que debitavam».
In
Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN
978-972-068-096-9.
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