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Factos
e Mitos. Destino
«(…)
A maior parte das filosofias tomou-a como admitida sem pretender explicá-la.
Conhece-se o mito platónico: no princípio, havia homens, mulheres e andróginos;
cada indivíduo possuía duas faces, quatro braços, quatro pernas e dois corpos,
colados um ao outro; foram um dia partidos em dois, da maneira como se partem
os ovos, e desde então cada metade procura reunir-se à sua metade complementar;
os deuses decidiram, posteriormente, que pela junção das duas metades
dessemelhantes novos seres humanos seriam criados. Mas é só o amor que essa
história se propõe explicar: a divisão em sexos é tomada, de início, como um
dado. Aristóteles não a justifica melhor, pois se a cooperação da matéria e da
forma é exigida em toda acção, não é necessário que os princípios activos e
passivos se distribuam em duas categorias de indivíduos heterogéneos. Assim é
que são Tomás declara que a mulher é um ser ocasional, o que é uma maneira de
afirmar, numa perspectiva masculina, o carácter acidental da sexualidade.
Hegel, entretanto, teria sido infiel a seu delírio racionalista se não houvesse
tentado fundamentá-la logicamente. A sexualidade representa, a seu ver, a
mediação através da qual o sujeito se atinge concretamente como género. O
gênero produz-se nele como um efeito contra essa desproporção de sua realidade
individual, como um desejo de reencontrar, em outro indivíduo de sua espécie, o
sentimento de si mesmo unindo-se a ele, de se completar e envolver, assim, o género
em sua natureza e trazê-lo à existência. E tem-se a união sexual. E mais
adiante: o processo consiste em saber o que eles são em si, isto é, um só género,
uma só e mesma vida subjectiva, eles o põem também como tal. E Hegel declara a
seguir que, para que se efectue o processo de aproximação, é preciso primeiramente
que haja diferenciação dos dois sexos. Mas sua demonstração não é convincente:
sente-se nela demasiadamente a ideia preconcebida de reencontrar em toda
operação os três momentos do silogismo. A superacção do indivíduo na espécie,
mediante a qual indivíduo e espécie se realizam em sua verdade, poderia efectuar-se,
sem terceiro termo, na simples relação do gerador com a criança: a reprodução
poderia ser assexuada. Ou, ainda, a relação de um a outro poderia ser a de dois
semelhantes, residindo a diferenciação na singularidade dos indivíduos de um
mesmo tipo, como acontece nas espécies hermafroditas. A descrição de Hegel
realça uma significação muito importante da sexualidade, mas seu erro consiste
em fazer sempre razão da significação. É exercendo a actividade sexual que os
homens definem os sexos e suas relações, como criam o sentido e o valor de
todas as funções que cumprem: mas ela não está necessariamente implicada na
natureza do ser humano. Na Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty observa
que a existência humana nos obriga a rever as noções de necessidade e de
contingência. A existência, diz ele, não tem atributos fortuitos, não tem
conteúdo que não contribua para dar-lhe sua forma, não admite em si mesma
nenhum facto puro, pois é o movimento pelo qual os factos são assumidos. É
verdade. Mas é também verdade que há condições sem as quais o próprio facto da
existência aparece como impossível. A presença no mundo implica rigorosamente a
posição de um corpo que seja a um tempo uma coisa do mundo e um ponto de vista sobre
esse mundo: mas não se exige que esse corpo possua tal ou qual estrutura
particular. Em O ser e o nada, Sartre discute a afirmação de Heidegger,
segundo a qual a realidade humana está condenada à morte pelo facto de sua
finitude; Sartre estabelece que uma existência finita e temporalmente ilimitada
seria concebível; entretanto, se a vida humana não fosse habitada pela morte, a
relação do homem com o mundo e consigo mesmo seria tão profundamente
transtornada que a definição o homem é mortal se apresentaria como coisa
inteiramente diversa de uma verdade empírica: imortal, um ser existente não
seria mais isso que chamamos um homem». In Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, volume
1, 1949, 2009 / 2015, Quetzal Editores, colecção Serpente Emplumada, ISBN
978-989-722-193-4.
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