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Factos
e Mitos. Destino
«(…)
Não pretendemos propor aqui uma filosofia da vida; e não queremos tomar
apressadamente partido na querela que opõe o finalismo ao mecanicismo. É
entretanto digno de nota o facto de que todos os fisiólogos e biólogos empregam
uma linguagem mais ou menos finalista, pelo único facto de darem um sentido aos
fenómenos vitais; adoptaremos o seu vocabulário. Sem nada decidir quanto à
relação entre a vida e a consciência, pode-se afirmar que todo facto vivo
indica uma transcendência, que em toda a função se encaixa um projecto: nossas
descrições não subentendem nada mais.
Na
grande maioria das espécies, os organismos masculinos e femininos cooperam em
vista da reprodução. São fundamentalmente definidos pelos gametas que produzem.
Em algumas algas e em alguns cogumelos, as células que fusionam para produzir o
ovo são idênticas; esses casos de isogamia são significativos pelo facto de
manifestarem a equivalência basal dos gametas; de maneira geral estes são
diferençados, mas a sua analogia permanece impressionante. Espermatozoides e
óvulos resultam de uma evolução de células primitivamente idênticas. O
desenvolvimento das células femininas em oócitos difere do dos espermatozoides
por fenómenos protoplásmicos, mas os fenómenos nucleares são sensivelmente os
mesmos. A ideia expressa em 1903 pelo biólogo Ancel é considerada válida ainda
hoje: uma célula progerminadora indiferençada se tornará masculina ou
feminina segundo as condições que encontra na glândula genital no momento da sua
aparição, condições reguladas pela transformação de certo número de células
epiteliais em elementos nutridores, elaboradores de um material especial.
Esse parentesco originário exprime-se na estrutura dos dois gametas que, no
interior de cada espécie, comportam o mesmo número de cromossomos. No momento
da fecundação, os dois núcleos confundem a sua substância e em cada um deles se
opera uma redução dos cromossomos, que ficam limitados à metade do seu número
primitivo. Essa redução produz-se em ambos de maneira análoga, redundando as
duas últimas divisões do óvulo na formação dos glóbulos polares, o que equivale
às duas últimas divisões do espermatozoide. Pensa-se hoje que, segundo a
espécie, é o gameta masculino ou o feminino que decide da determinação do sexo.
Entre os mamíferos é o espermatozoide que possui um cromossomo heterogéneo aos
outros e cuja potencialidade é ora masculina, ora feminina. Quanto à
transmissão dos caracteres hereditários, ela se efectua segundo as leis
estatísticas de Mendel tanto pelo pai como pela mãe. O que cumpre notar é que
nenhum dos gametas tem privilégio nesse encontro. Ambos sacrificam sua
individualidade, absorvendo o ovo a totalidade de sua substância. Há, portanto,
dois preconceitos muito comuns que, pelo menos nesse nível biológico
fundamental, se evidenciam falsos: o primeiro é o da passividade da fêmea; a
faísca viva não se acha encerrada em nenhum dos dois gametas: desprende-se do
encontro deles. O núcleo do óvulo é um princípio vital exactamente simétrico ao
do espermatozoide. O segundo preconceito contradiz o primeiro, o que não impede
que muitas vezes coexistam: o de que a permanência da espécie é assegurada pela
fêmea, tendo o princípio masculino uma existência explosiva e fugaz. Na
realidade, o embrião perpetua o germe do pai tanto quanto o da mãe e os
retransmite juntos aos descendentes, ora sob a forma masculina, ora sob a
feminina. É, por assim dizer, um germe andrógino que, de geração em geração,
sobrevive aos avatares individuais do soma.
Dito
isso, cabe acrescentar que se observam diferenças secundárias das mais
interessantes entre o óvulo e o espermatozoide; a singularidade essencial do
óvulo consiste em estar carregado de materiais destinados a nutrir e proteger o
embrião. Ele acumula reservas à custa das quais o feto construirá os seus
tecidos, reservas que não são uma substância viva, e sim uma matéria inerte;
disso resulta que apresenta uma forma maciça, esférica ou elipsoidal e é
relativamente volumoso. Não se ignoram as dimensões que atinge o ovo do
pássaro; na mulher o óvulo mede 0,13 mm de diâmetro, ao passo que no esperma
humano encontram-se 60.000 espermatozoides por milímetro cúbico. A massa do
espermatozoide é extremamente reduzida; ele possui uma cauda filiforme, uma
cabecinha alongada, nenhuma substância estranha o entorpece, todo ele é vida. A
sua estrutura o destina à mobilidade; ao passo que o óvulo, em que se acha
armazenado o futuro do feto, é um elemento fixo. Encerrado no organismo
feminino ou suspenso em um meio exterior, aguarda passivamente a fecundação. É
o gameta masculino que o procura. O espermatozoide é sempre uma célula nua; o
óvulo, segundo as espécies, é protegido ou não por uma membrana, mas, em todo
caso, logo que entra em contato com ele, o espermatozoide empurra-o, fá-lo
oscilar e infiltra-se nele. O gameta masculino abandona a cauda, a cabeça incha
e num movimento giratório alcança o núcleo. Durante esse tempo, o ovo forma, de
imediato, uma membrana, protegendo-se contra os outros espermatozoides. Entre
os equinoides, em que a fecundação é externa, é fácil observar, em volta do
óvulo que flutua inerte, a corrida dos espermatozoides que o cercam como uma
auréola. Essa competição é também um fenómeno importante e encontrado na
maioria das espécies. Muito menor do que o óvulo, o espermatozoide é geralmente
emitido em quantidades muito mais consideráveis, e cada óvulo tem vários
pretendentes». In Simone Beauvoir, O Segundo Sexo, volume 1, 1949, 2009 / 2015,
Quetzal Editores, colecção Serpente Emplumada, ISBN 978-989-722-193-4.
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