Cortesia de wikipedia e jdact
«As honras da paródia só às obras do
génio costumam conceder-se. A divina Ilíada
foi parodiada num poema herói-cómico tão antigo, que geralmente se atribui
ao próprio Homero; ainda que Suidas lhe dá por autor a Pigres, irmão da Rainha
Artemisa. Nesse poema, intitulado a Batrachomiomachia,
a terrível luta dos Gregos e Troianos é reproduzida no maravilhoso combate dos
ratos e das rãs. Esta coroa burlesca ainda faltava ao rival de Homero, quando o
poeta Scarron primeiro
marido da famigerada Marquesa de Maintenon, se lembrou de cantar:
… cet home pieux,
Qui vint chargé de tous se Dieux
Et de Monsieur son père Anchise,
Beau vieilard à la barbe grise, etc.
A grande
obra do único homem de génio que talvez tenha produzido a nossa terra, não
podia isentar-se deste fado inerente às grandes celebridades. Eram apenas
passados dezoito anos depois da publicação dos Lusíadas ainda a reputação de Camões não estava
consagrada pelos séculos, quando alguns homens engenhosos compreenderam que
aquela obra imortal era uma daquelas a que a paródia era devida. O resultado de
seus trabalhos não é de certo para comparar com nenhuma das espirituosas
produções que ficam mencionadas; mas ainda assim não é esta inteiramente
destituída de merecimento. Francisco Soares Toscano, bem conhecido dos
literatos pelo seu Paralelo de
Príncipes, escreveu uma interessante notícia sobre esta obra, em que
nos conta o curioso modo por que ela foi composta. Quatro estudantes da
Universidade de Évora costumavam sair a passear, às tardes, aos arrabaldes da
cidade, levando consigo os Lusíadas. Chegados a um verde ferrageal, sentavam-se
a uma fresca sombra, e se abria a sessão parodiadora. Assim como a
engelhada e disforme máscara de uma velha megera cobre o rosto radiante de formosura
de uma elegante Coquete,
para mais fazer realçar seus encantos, quando deixe cair aquele hediondo
disfarce; assim o imortal poema devia ser desfigurado por aqueles travessos
estudantes. Os Gamas, Castros e Albuquerques tinham de ceder o seu lugar aos
Catigelas, Lunas e Barbanças, barões sem dúvida tão assinalados nos combates de
Baco como ess’outros nos de Marte.
Dois
meses durava aquela sessão extraordinária; e já tão continuados passeios davam
que falar aos estudantes e também dariam que entender à Santa Inquisição (maldita) de Évora, se
aquela sociedade secreta não fosse composta, como de facto o era, de quatro
teólogos, e tão ortodoxos, que um deles veio a ser inquisidor geral. Mas por
fim apareceu a misteriosa obra dos quatro patuscos, como hoje lhe chamaria um
académico, e não sei se já então lhe chamavam. A este modo de composição de sociedade
e às muitas emendas que depois sofreu dos curiosos, como adverte Toscano, se
deve talvez a confusão do enredo deste poema. Parece que os seus colaboradores
tinham principalmente em vista inverter ao de-vinho cada verso que entrava em discussão, sem atender
à coerência do todo. É provável que se propusessem a celebrar os mais famosos
bebedores Évorenses, aos quais aludissem, e talvez nomeassem por seus próprios
nomes ou apelidos. Toscano, que os devia conhecer, assim o indica quando diz
que tinha feito várias cotas a esta paródia para melhor se entender. Com efeito
na est. XXX se faz menção de um Pero
Vaz, que provavelmente é o mesmo cristão-novo, bêbado perdido, autor
do epigrama latino de que fala a notícia. Infelizmente para a história da Borracheologia Lusitana, cotas e
epigrama tudo se perdeu.
Os
colaboradores desta inocente profanação literária não são inteiramente desconhecidos.
Manoel do Vale de Moura, natural de Arraiolos no Alentejo, doutorou-se
em Teologia na Universidade de Évora, e chegou a ser arcebispo desta diocese e
inquisidor geral. Contava vinte e cinco anos quando concorria para esta
composição, e chegou a uma avançada idade. Além da obra De Encantationibus et Ensalmis,
de que fala Toscano, e outras de não menor utilidade, Barboza o faz autor de
uma Ilustração à primeira Ode de
Camões. De certo não fez pouco Sua Reverendíssima se conseguiu
lançar alguma luz sobre aquele confuso ou estropiado poema. Nem Bartolomeu Varela, nem o licenciado
Manoel Luiz, tiveram a honra
de encher as colunas da Biblioteca Lusitana; mas João Batista Castro de
ambos faz menção no seu Mapa de Portugal. Não é contudo a Varela, como ele
pensa, que cabem os louvores que lhe dá por esta composição burlesca. Manoel
Luiz Freire, que assim lhe chama um padre Francisco Cruz, citado por
Castro, se deve ter como o principal e mais chistoso colaborador desta obra». In Décio
Carneiro, Paródia ao Primeiro Canto dos Lusíadas de Camões, Quatro Estudantes
de Évora, 1589, 1880, autoria anónima, Projecto Livro Livre, livro 660, 2015,
Poeteiro Editor Digital, Iba Mendes.
Cortesia de IbaMendes/JDACT