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Óbidos. 16 de Abril de 1650; madrugada
«A noite estava calma, serena, amena... O
silêncio que a pautava era denunciador, acusador. A Lua projectava nas polidas
pedras daquela principal rua a reflectida luz de um Sol que, naquele momento,
iluminava e preenchia de vida outras paragens mais para oeste.
Três figuras haviam, no início da
madrugada, começado a perscrutar o labirinto de ruas e ruelas da pequena urbe,
munidas de um pequeno baú de madeira, sem quaisquer relevos, incrustações ou
decorações, devidamente trancado, e de duas rudimentares ferramentas, um esguio
ferro e uma pá. Àquela hora os guardas já haviam recolhido, e apenas as
sentinelas que se encontravam nas portas da muralha estavam em riste face a
quaisquer ameaças. Como aqueles três homens provinham da estalagem, que se
situava logo na entrada este da urbe, nenhum tumulto fora suscitado ao guarda
que fazia a vigilância daquele posto.
Os três homens olham a Lua pela janela e
olham-se mutuamente, olhares que diziam que chegara o momento. Um deles deixa o
quarto, desce cerca de um terço da escadaria que acede ao piso térreo e percebe
que o pó que havia sido comprado naquele dia a um mercador, e que havia sido
misturado na cerveja do estalajadeiro, estava a fazer o seu efeito. O homem
dormia como uma pedra, ressonado de forma ensurdecedora, o que ajudaria a
camuflar algum barulho que fizessem a descer as escadas e a sair. Todos os
habitantes e os próprios guardas não viam com bons olhos aqueles alemães, que
haviam chegado a Óbidos há cerca de três semanas, mas como eram grandes
consumidores de cerveja e de tudo o que se mercava por ali, eram vistos como
alguém que ajudava muito à pequena economia local.
Com o homem a dormir que nem um urso, juntam-se
os três naquele pequeno hall empedrado, abrindo um deles a porta com cuidado e
olhando para o posto do sentinela. A luz da Lua deixava perceber a silhueta do
guarda. O homem sai e desloca-se com cautela para uma sombra, arremessando para
bem longe, por cima da muralha, uma redonda pedra que já tinha nas mãos.
Enquanto o guarda tentava perceber se era animal ou se era gente que por ali se
movimentava, já com a corneta em riste, os outros dois abandonam a estalagem,
deixando a pesada porta encostada, deslocando-se todos para as sombras que iam
encontrando no sentido norte. Mais à frente, perto da torre, sobem para a
muralha e começam a caminhar de modo a circundarem a urbe e a verificarem se a
calma seria real ou apenas aparente. As ruas estavam mortas, toda a gente jazia
no sono da noite e o silêncio era límpido.
Descem a muralha já perto da porta sul e,
segundo os esquemas já estudados, que tinham a ver com o momento e com a
posição da Lua, colocam-se no início da rua principal, a qual desembocava na
torre. Aí, uma das primeiras pedras do chão é levantada sob a força dos três
transmitida ao esguio ferro, debaixo da qual fora colocado um pergaminho, a
decifração dos latentes indícios que a luz da Lua imprimia nas paredes,
consistindo muitos desses indícios em indicações configuradas em sombras. A
pedra foi colocada no sítio, viraram depois à direita, à esquerda, de novo à
esquerda, e subiram outra vez à rua principal. Caminharam uns metros na rua e
viraram depois à esquerda, subindo até à base da muralha do lado oeste, virando
depois à direita e detendo-se uns metros mais à frente. Aí, levantam uma grande
pedra, escavam um pouco por baixo, colocam no pequeno buraco o pequeno baú,
repõem a terra e selam tudo com a grande pedra, varrendo com as mãos e
os pés os resquícios de terra que ainda por ali permaneciam. Olham uma última
vez para o local e dirigem-se de novo para a estalagem. Ao virarem para
esquerda, já na rua principal, a brilhante lâmina de uma adaga que um
encapuzado ostentava petrificara os seus olhares. Uma rude luta entre as
rudimentares ferramentas e a brilhante adaga começara. O barulho da luta
atraíra para o local os guardas que perscrutavam nas ruas por algo que lhes
fora relatado. Ao chegarem ao local, os três alemães encontravam-se prostrados
no chão, golpeados de profunda forma e com as vestes abertas. Mais para sul, de
sombra em sombra, aquela figura encapuzada, que fora impedida de seguir todos
os passos dos três rosacrucianos pela movimentação dos guardas, dirigia-se para
casa, transportando dentro das vestes a réplica do papiro enterrado com que os
três homens haviam ficado. Entra em casa e no imediato parecera que não era
aquela noite mais que uma igual a tantas outras... Silenciosa, a envolver no
sono todos os habitantes das muralhas... Ou quase todos.
Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649
Temos de continuar a cavalgar! Temos que
chegar à França antes que os guardas nos alcancem!, profere um dos três
cavaleiros, virado para trás, tomando a liderança da deslocação. Era fim de
tarde de um dia gélido, e a gélida aragem parecia cortar a carne como adagas
bem afiadas. Os três homens cavalgavam pela protecção de algo que lhes proporcionava
serem perseguidos pelos guardas alemães, que lhes seguiam o rasto a alguns
quilómetros atrás. Aquele líder transportava no regaço um pequeno baú de
madeira, simples, sem quaisquer incrustações ou relevos. Os homens davam na
altura tudo por tudo para chegarem a terras francesas antes que aqueles que os
perseguiam os capturassem em terras germânicas, ficando os cavaleiros imunes
assim que atravessassem a fronteira». In Jorge Durão, A Herança de RosaCruz, O
Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3.
Cortesia de JDurão/JDACT