domingo, 30 de abril de 2017

A Herança de RosaCruz Jorge Durão. «Temos de continuar a cavalgar! Temos que chegar à França antes que os guardas nos alcancem!»

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Óbidos. 16 de Abril de 1650; madrugada
«A noite estava calma, serena, amena... O silêncio que a pautava era denunciador, acusador. A Lua projectava nas polidas pedras daquela principal rua a reflectida luz de um Sol que, naquele momento, iluminava e preenchia de vida outras paragens mais para oeste.
Três figuras haviam, no início da madrugada, começado a perscrutar o labirinto de ruas e ruelas da pequena urbe, munidas de um pequeno baú de madeira, sem quaisquer relevos, incrustações ou decorações, devidamente trancado, e de duas rudimentares ferramentas, um esguio ferro e uma pá. Àquela hora os guardas já haviam recolhido, e apenas as sentinelas que se encontravam nas portas da muralha estavam em riste face a quaisquer ameaças. Como aqueles três homens provinham da estalagem, que se situava logo na entrada este da urbe, nenhum tumulto fora suscitado ao guarda que fazia a vigilância daquele posto.
Os três homens olham a Lua pela janela e olham-se mutuamente, olhares que diziam que chegara o momento. Um deles deixa o quarto, desce cerca de um terço da escadaria que acede ao piso térreo e percebe que o pó que havia sido comprado naquele dia a um mercador, e que havia sido misturado na cerveja do estalajadeiro, estava a fazer o seu efeito. O homem dormia como uma pedra, ressonado de forma ensurdecedora, o que ajudaria a camuflar algum barulho que fizessem a descer as escadas e a sair. Todos os habitantes e os próprios guardas não viam com bons olhos aqueles alemães, que haviam chegado a Óbidos há cerca de três semanas, mas como eram grandes consumidores de cerveja e de tudo o que se mercava por ali, eram vistos como alguém que ajudava muito à pequena economia local.
Com o homem a dormir que nem um urso, juntam-se os três naquele pequeno hall empedrado, abrindo um deles a porta com cuidado e olhando para o posto do sentinela. A luz da Lua deixava perceber a silhueta do guarda. O homem sai e desloca-se com cautela para uma sombra, arremessando para bem longe, por cima da muralha, uma redonda pedra que já tinha nas mãos. Enquanto o guarda tentava perceber se era animal ou se era gente que por ali se movimentava, já com a corneta em riste, os outros dois abandonam a estalagem, deixando a pesada porta encostada, deslocando-se todos para as sombras que iam encontrando no sentido norte. Mais à frente, perto da torre, sobem para a muralha e começam a caminhar de modo a circundarem a urbe e a verificarem se a calma seria real ou apenas aparente. As ruas estavam mortas, toda a gente jazia no sono da noite e o silêncio era límpido.
Descem a muralha já perto da porta sul e, segundo os esquemas já estudados, que tinham a ver com o momento e com a posição da Lua, colocam-se no início da rua principal, a qual desembocava na torre. Aí, uma das primeiras pedras do chão é levantada sob a força dos três transmitida ao esguio ferro, debaixo da qual fora colocado um pergaminho, a decifração dos latentes indícios que a luz da Lua imprimia nas paredes, consistindo muitos desses indícios em indicações configuradas em sombras. A pedra foi colocada no sítio, viraram depois à direita, à esquerda, de novo à esquerda, e subiram outra vez à rua principal. Caminharam uns metros na rua e viraram depois à esquerda, subindo até à base da muralha do lado oeste, virando depois à direita e detendo-se uns metros mais à frente. Aí, levantam uma grande pedra, escavam um pouco por baixo, colocam no pequeno buraco o pequeno baú, repõem a terra e selam tudo com a grande pedra, varrendo com as mãos e os pés os resquícios de terra que ainda por ali permaneciam. Olham uma última vez para o local e dirigem-se de novo para a estalagem. Ao virarem para esquerda, já na rua principal, a brilhante lâmina de uma adaga que um encapuzado ostentava petrificara os seus olhares. Uma rude luta entre as rudimentares ferramentas e a brilhante adaga começara. O barulho da luta atraíra para o local os guardas que perscrutavam nas ruas por algo que lhes fora relatado. Ao chegarem ao local, os três alemães encontravam-se prostrados no chão, golpeados de profunda forma e com as vestes abertas. Mais para sul, de sombra em sombra, aquela figura encapuzada, que fora impedida de seguir todos os passos dos três rosacrucianos pela movimentação dos guardas, dirigia-se para casa, transportando dentro das vestes a réplica do papiro enterrado com que os três homens haviam ficado. Entra em casa e no imediato parecera que não era aquela noite mais que uma igual a tantas outras... Silenciosa, a envolver no sono todos os habitantes das muralhas... Ou quase todos.

Karlruhe. Alemanha, Dezembro de 1649
Temos de continuar a cavalgar! Temos que chegar à França antes que os guardas nos alcancem!, profere um dos três cavaleiros, virado para trás, tomando a liderança da deslocação. Era fim de tarde de um dia gélido, e a gélida aragem parecia cortar a carne como adagas bem afiadas. Os três homens cavalgavam pela protecção de algo que lhes proporcionava serem perseguidos pelos guardas alemães, que lhes seguiam o rasto a alguns quilómetros atrás. Aquele líder transportava no regaço um pequeno baú de madeira, simples, sem quaisquer incrustações ou relevos. Os homens davam na altura tudo por tudo para chegarem a terras francesas antes que aqueles que os perseguiam os capturassem em terras germânicas, ficando os cavaleiros imunes assim que atravessassem a fronteira». In Jorge Durão, A Herança de RosaCruz, O Tesouro Perdido de Óbidos, Edição do Autor, 2013, ISBN 978-989-866-401-3. 

Cortesia de JDurão/JDACT

Contos Escolhidos. Guy Maupassant. «Enfim, a casa Tellier era um refúgio, e raramente alguém faltava ao encontro quotidiano. Ora aconteceu que uma noite…»

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A casa Tellier
«(…) As três damas do primeiro andar chamavam-se Fernanda, Rafaela e Rosa Pileca. Como o pessoal era pouco, tinha-se procurado que cada uma delas fosse uma espécie de amostra, de um resumo do tipo feminino, para que todos os consumidores pudessem encontrar ali, ao menos aproximadamente, a realização do seu ideal. A Fernanda representava a loiraça, muito alta, quase obesa, mole, rapariga do campo cujas sardas se recusavam a desaparecer, e cujo cabelo amarelo-desbotado, encurtado, claro e sem cor, que parecia cânhamo penteado, mal lhe cobria o crânio. A Rafaela, uma marselhesa, prostituta dos portos de mar, representava o papel indispensável da bela judia, magra, com as maçãs do rosto cobertas de vermelhão. Os cabelos pretos, postos a brilhar com medula de boi, encaracolavam-se-lhe nas têmporas. Os olhos teriam sido bonitos se o direito não tivesse a marca de uma catarata. O nariz arqueado descaía sobre uma queixada proeminente, onde dois dentes novos, de cima, contrastavam com os de baixo, que, com o tempo, tinham tomado uma coloração escura como a das madeiras antigas. A Rosa Pileca, uma bolinha de carne toda ela barriga com umas pernas minúsculas, cantava de manhã até à noite, numa voz rouca, umas cantigas ora licenciosas ora sentimentais, contava histórias intermináveis e insignificantes, só parava de falar para comer e de comer para falar, e andava sempre de um lado para o outro, ágil como um esquilo apesar da gordura e da exiguidade das patas; e o seu riso, uma cascata de gritos agudos, estalava constantemente, por aqui e por ali, num quarto, no sótão, no café, por toda a parte, a propósito de tudo e de nada.
As duas mulheres do rés-do-chão, a Luísa, apelidada de Cocote, e a Flora, chamada Baloiço por coxear um bocado, uma sempre vestida de Liberdade com uma faixa tricolor à cintura, e a outra de espanhola de fantasia com cequins de cobre que lhe dançavam no cabelo cor de cenoura a cada um dos seus passos desiguais, dir-se-iam serventes de cozinha mascaradas para um carnaval. Semelhantes a todas as mulheres do povo, nem mais feias nem mais bonitas, verdadeiras criadas de estalagem, eram designadas no porto pela alcunha de as duas Chancas.
Reinava entre estas cinco mulheres uma paz ciumenta, mas raramente perturbada, graças à sabedoria conciliadora da Madame e ao seu inesgotável bom humor. O estabelecimento, único naquela pequena cidade, era muito frequentado. A Madame soubera infundir-lhe uma apropriada elegância: mostrava-se tão amável, tão obsequiosa para com toda a gente, e o seu bom coração era tão bem conhecido que era rodeada de uma espécie de consideração. Os frequentadores habituais eram capazes de fazer tudo por ela e sentiam-se triunfantes quando ela lhes demonstrava uma amizade mais evidente; e quando durante o dia se encontravam nos seus locais de trabalho diziam uns para os outros: até logo à noite, onde a gente sabe, como quem diz: no café, não é verdade? Depois do jantar.
Enfim, a casa Tellier era um refúgio, e raramente alguém faltava ao encontro quotidiano. Ora aconteceu que uma noite, em fins de Maio, o primeiro a chegar, o senhor Poulin, negociante de madeiras e antigo presidente da Câmara, deparou com a porta fechada. O lanternim, atrás da sua grade, não brilhava e não saía qualquer ruído da casa, que parecia morta. Bateu à porta, primeiro devagarinho e depois com mais força, mas não respondeu ninguém. Tornou então a subir a rua em passinhos curtos e, ao chegar à praça do Mercado, encontrou o senhor Duvert, o armador, que se dirigia para o mesmo lugar. Voltaram lá juntos sem melhor êxito. Mas um grande barulho estalou de repente muito perto deles, e, dando a volta à casa, viram um ajuntamento de marinheiros ingleses e franceses que davam murros nas portadas fechadas do café.
Os dois burgueses puseram-se imediatamente em fuga para não se verem comprometidos; mas foram detidos por um leve pssst: era o senhor Tournevau, o da salga de peixe, que, tendo-os reconhecido, estava a chamá-los. Contaram-lhe o que se passava, o que ainda mais o afectou a ele, que, casado, pai de família e muito vigiado, só lá ia aos sábados securitatis causa, dizia ele, aludindo assim a uma medida de polícia sanitária cujas periódicas sequências o doutor Borde, seu amigo, lhe havia revelado. Aquela era justamente a noite dele, e ia assim ficar privado uma semana inteira.
Os três homens deram uma grande volta até ao cais, e encontraram no caminho o jovem senhor Philippe, filho do banqueiro, um frequentador habitual, e o senhor Pimpesse, recebedor dos impostos. Regressaram então todos juntos pela rua dos Judeus para fazerem uma última tentativa. Mas os marinheiros exasperados cercavam a casa, atiravam pedras, berravam; e os cinco clientes do primeiro andar, arrepiando caminho o mais depressa possível, puseram-se a vaguear pelas ruas». In Guy Maupassant, Contos Escolhidos, 1885, Edições don Quixote, Grupo Leya, 2011, ISBN 978-972-204-682-4.
Cortesia de EdonQuixote/JDACT

Contos Escolhidos. Guy Maupassant. «O salão de Júpiter, onde se reuniam os burgueses do lugar, era forrado a papel azul e enfeitado com um grande desenho que representava Leda…»

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A casa Tellier
«Iam lá todas as noites, por volta das onze, simplesmente como quem vai ao café. Eram seis ou oito os que ali se encontravam, sempre os mesmos, não uns pândegos quaisquer, mas homens respeitáveis, comerciantes e gente nova da cidade; e tomavam o seu licor fazendo algumas brincadeiras travessas às raparigas, ou então conversavam gravemente com a Madame, que toda a gente respeitava. E depois saíam para se irem deitar antes da meia-noite. Às vezes os jovens ficavam. Era uma casa de família, pequenina, pintada de amarelo, na esquina de uma rua por trás da igreja de Santo Estêvão; e das janelas avistava-se a doca cheia de navios a descarregar, o grande brejo salgado a que chamavam A Retenção e, lá atrás, a costa da Virgem com a sua velha capela enegrecida.
A Madame, oriunda de uma boa família de camponeses do departamento do Eure, aceitara aquela profissão exactamente como poderia ter sido modista ou fanqueira. O preconceito desonroso ligado à prostituição, tão violento e vivaz nas cidades, não existe nas terras de província normandas. O camponês diz: é um bom ofício; e destina ao filho a gestão de um harém de raparigas do mesmo modo que lhe daria a gerir um internato de meninas. De resto, aquela casa viera por herança de um velho tio seu proprietário. O Senhor e a Madame, em tempos estalajadeiros nos arredores de Yvetot, haviam imediatamente liquidado o seu negócio, por considerarem que o de Fécamp lhes seria mais vantajoso; e tinham chegado um belo dia para assumir a direcção da empresa que estava periclitando na ausência dos patrões.
Eram boas pessoas, que desde logo conquistaram a estima do pessoal e dos vizinhos. O Senhor morreu de uma congestão passados dois anos. Como a sua nova profissão lhe proporcionava uma vida de indolência e imobilidade, engordara muito e a saúde liquidara-o. A Madame, depois de enviuvar, era desejada em vão por todos os frequentadores habituais do estabelecimento; mas tinha a fama de ser absolutamente honesta, e nem sequer as suas pensionistas haviam descoberto fosse o que fosse.
Era alta, cheia de carnes, elegante. A pele, empalidecida na obscuridade daquela casa sempre fechada, brilhava como que untada por um verniz gorduroso. Rodeava-lhe a testa um esguio enfeite de cabelos travessos, o que lhe dava um aspecto juvenil que destoava da maturidade das suas formas. Invariavelmente alegre e de expressão franca, era dada a gracejos, com uma tonalidade comedida que as suas novas ocupações ainda não lhe tinham feito perder. As palavras feias chocavam-na sempre um pouco; e, quando um rapaz mal educado chamava pelo nome próprio o estabelecimento que dirigia, zangava-se, revoltada. Tinha, enfim, uma alma delicada e, embora tratasse as suas mulheres como amigas, não se cansava de repetir que não era da mesma laia.
Às vezes, durante a semana, saía num carro de aluguer com uma parte do seu grupo; e iam folgar na relva à beira de um regato que corre nas terras de Valmont. Havia então pensionistas que desapareciam fugidas, correrias loucas, brincadeiras infantis, toda uma alegria de reclusas inebriadas pelo ar livre. Comiam enchidos deitadas na relva bebendo cidra, e voltavam ao entardecer com um delicioso cansaço, com uma doce comoção; e no carro beijavam a Madame que era tão boa mãe, cheia de mansidão e complacência.
A casa tinha duas entradas. Na esquina da rua havia uma espécie de café de ruim aparência, que abria à noite para a gente do povo e para os marinheiros. Duas das pessoas encarregadas do comércio específico do local eram particularmente destinadas às necessidades daquela parte da clientela. Com a ajuda do criado, chamado Frédéric, um loirinho imberbe e forte como um boi, serviam os quartilhos de vinho e as litradas nas mesas desengonçadas de mármore, e, com os braços à roda do pescoço dos bebedores, sentadas de viés nas pernas deles, encorajavam-nos a consumir. As três outras damas (elas eram ao todo cinco) formavam uma espécie de aristocracia, e permaneciam reservadas ao grupo do primeiro andar, a não ser quando precisavam delas lá em baixo e o andar de cima estava vazio.
O salão de Júpiter, onde se reuniam os burgueses do lugar, era forrado a papel azul e enfeitado com um grande desenho que representava Leda estendida debaixo de um cisne. Chegava-se até lá através de uma escada de caracol que terminava numa porta estreita, de aparência humilde, que dava para a rua, e por cima da qual brilhava toda a noite, atrás de uma grade, uma pequena lanterna daquelas que se acendem ainda em certas cidades aos pés das Nossas Senhoras encastradas nas paredes. O prédio, húmido e velho, cheirava ligeiramente a mofo.
De vez em quando perpassava pelos corredores um hálito de água-de-colónia, ou então uma porta entreaberta lá em baixo fazia ressoar por toda a casa, como a explosão de uma trovoada, os gritos popularunchos dos homens das mesas do rés-do-chão, e provocava nas caras dos senhores do primeiro andar um esgar de inquietação e repugnância. A Madame, íntima dos seus amigos clientes, não saía da sala, e interessava-se pelos boatos que corriam na cidade e que através deles lhe chegavam. A sua conversa séria contrastava com as frases incoerentes das três mulheres; ela era como que uma pausa na jovialidade brejeira dos senhores barrigudos que todas as noites se entregavam àquele honesto e medíocre deboche de beberem um cálice de licor na companhia de mulheres públicas». In Guy Maupassant, Contos Escolhidos, 1885, Edições don Quixote, Grupo Leya, 2011, ISBN 978-972-204-682-4.
Cortesia de EdonQuixote/JDACT

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «Contudo, a insolência deve ser punida, retomou o monarca. Fazei uma excepção, por mim, insistiu o príncipe»

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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) Maynard baixou o olhar, mais por respeito pelos companheiros mortos do que por receio do monarca. É verdade que subvalorizámos os arqueiros, admitiu, de dentes cerrados. Mas da próxima vez... Não haverá próxima vez, silenciou-o Filipe VI. Não no futuro imediato, pelo menos.
O cavaleiro foi invadido pelo espanto. Não ides ficar à espera de que Eduardo III e o Príncipe Negro marchem sobre Paris! A sua meta não é Paris, mas Calais. E ireis deixar que a tomem de assalto? Não temos escolha.
Maynard suspirou, profundamente desiludido. Não era uma crítica à estratégia a adoptar, mas à facilidade com que fora silenciado. Se é como dizeis, majestade, isso significa que em Crécy perdemos algo mais importante do que uma batalha. Rocheblanche!, apostrofou-o o rei. O senhor vosso pai nunca se permitiria dirigir-se a nós com tal insolência. O meu pai era um animal, pensou o cavaleiro. Antes de responder, detectou um olhar rápido do príncipe Karel a um candelabro coberto de ferrugem, atrás do qual entreviu uma figura negra que se movia na sombra. Um segundo depois, a figura deslizou na escuridão.
Mavnard pensou fazê-lo notar ao monarca, mas mordeu a língua. Já vira e falara o suficiente.
Peço licença, disse, portanto, fingindo-se consternado. Não pretendia faltar ao respeito, apenas expressar a minha opinião. Não peço opiniões. Filipe VI estava longe de querer acalmar-se. Não penseis que irei cobrar barato, senhor. Foi então que Karel do Luxemburgo se intrometeu na conversa. Majestade, disse, em tom conciliador, talvez o vosso cavaleiro apenas precise de descanso. Deteve-se à sua frente com ar melífluo. Reparastes na sua palidez? Mais do que o seu carácter, a ferida na perna deve ter-lhe comprometido o entendimento.
Contudo, a insolência deve ser punida, retomou o monarca. Fazei uma excepção, por mim, insistiu o príncipe. Este homem trouxe notícias de meu pai. Infelizmente, notícias tristes, mas que, porém, me tornam seu devedor. Depois de um instante de silêncio, o rei concordou. Rocheblanche, agradecei ao nobre Karel pela sua magnanimidade. E, impaciente, acrescentou: dispensamos-vos com a ordem de regressardes às vossas terras logo que estiverdes recomposto. Nunca mais ouseis faltar ao respeito ao vosso soberano. Maynard apoiou-se no cajado e desenhou uma reverência. Erguendo os olhos, avistou o riso malicioso de Karel do Luxemburgo e notou que este o observava com a desconfiança ávida de um inquisidor. Percebeu então que não conseguira enganá-lo. E que fizera um grande inimigo.
Chegar à saída da igreja não foi empresa fácil. Não pela dificuldade em andar, mas devido ao peso que Maynard começava a sentir dentro de si. Era verdade que Karel do Luxemburgo o defendera para o prender numa relação de cumplicidade. Uma cumplicidade entre inimigos. E, embora ignorasse em que medida estava envolvido na morte de Jang de Blannen, sentia que devia proteger-se daquele homem. Desconfiava de que ele pressentira a sua mentira e de que, de uma maneira ou de outra, se esforçaria por descobrir o que lhe escondia.
Parou a meio da nave central, como que para pedir conselho ao crucifixo que se destacava no altar. Viu-o reluzir sob uma janela destituída de vitrais, esculpido na madeira. O Cristo suspenso pelos pregos era magro e nodoso, com dois grandes olhos talhados em forma de gota. O cavaleiro entreabriu os lábios para lhe dirigir uma prece, mas foi de tal modo atraído que já não conseguiu formular um único pensamento. Dor corporal e dor espiritual». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

Hipatia de Alejandría. Maria Dzielska. «Hipatia admite que la persona de Cristo es sagrada para ella, pero también siente afinidad por los dioses encamados en las eternas estructuras del universo»

Cortesia de wikipedia e JDACT

«(…) La hermosa y sabia discípula de Platón trata de convencer al severo patriarca Cirilo de que sólo hay una pequeña diferencia entre neoplatonismo y cristianismo: las palabras son ligeramente diferentes, el significado es prácticamente el mismo. Hipatia admite que la persona de Cristo es sagrada para ella, pero también siente afinidad por los dioses encamados en las eternas estructuras del universo. Las deidades se revelan en la belleza de la naturaleza, en el conocimiento de los cuerpos astrales, en la maravilla del arte, en la espiritualidad de los sabios que buscan la verdad. La declaración de Cirilo Tus dioses han quedado reducidos a polvo, a los pies del Cristo victorioso, provoca el credo apasionado de Hipatia: Ne le crois pas, Cyrille! Lis vivent dans mon casur, non tels que tu les vois, vétus de formes vaines, subissant dans le ciel les passions humaines, adores du vulgaire et dignes de mépris; mais tels que les ont vus de sublimes esprits: dans l’espace étoilé n’ayant point de demeures, forces de Vunivers, vertus intérieures, de la terre et du ciel concours harmonieux qui charme la pensée et l’oreille et les yeux, et qui donne, idéal aux sages accessible, á la beauté de l’áme une splendeur visible. Tels sont mes dieux! [No lo creas, Cirilo! Viven en mi corazón, no como los ves, vestidos de formas perecederas, sujetos hasta en el cielo a las pasiones humanas, adorados por el vulgo y dignos de desdén; sino como los han visto espíritus sublimes: en el espacio estrellado que carece de moradas, fuerzas del universo, virtudes interiores, unión armoniosa de la tierra y el cielo que encanta al pensamiento, el oído y los ojos, y que ofrece un ideal accesible a los sabios, y a la belleza del alma esplendor visible. Tales son mis dioses!].

Hipatia y Cirilo, lleno de exaltación y de éxtasis romántico acerca del paraíso de los griegos, concluye con una descripción de la indignación del obispo. No entiende en absoluto la fe de Hipatia en el mundo de las inteligencias divinas ni en la belleza natural del universo. Cirilo la amenaza a ella y a su mundo con la maldición del olvido, de la desaparición de la cultura antigua. Los poemas de Leconte Lisie se admiran y se leen mucho en el siglo XIX; y la imagen de una Hipatia enamorada de las formas ideales del mundo visible, en contraste con las esferas cerradas del cristianismo rígidamente dogmático de Cirilo, ha sobrevivido hasta nuestros días. Incluso en la actualidad tendemos a asociar la figura de Hipatia con el verso de Lisie le souffle de Platón et le corps d’Aphrodite, el espíritu de Platón y el cuerpo de Afrodita.

Gérard Nerval, contemporáneo de Leconte Lisie aunque algo más joven, cita a Hipatia en una obra de 1854, y en 1888 Maurice Barres publica un relato breve, la vierge assassinée, en una colección titulada Sous l’oeil des barbares. Barres afirma en su introducción que escribe el relato a petición de Leconte Lisie, su maestro parnasiano. La vierge assassinée combina elementos bucólicos con una presentación fría y austera de la filosofía y de las virtudes morales. La narración comienza cuando el joven Lucio conoce a Amarilis, encantadora y bella cortesana de Alejandría, en las orillas del Nilo, cubiertas de nenúfares. Los mármoles de un templo y de algunas esculturas griegas brillan más allá de los árboles y vemos además edificios de la urbe y barcos anclados en el puerto. La rica y hermosa Alejandría está, sin embargo, en decadencia: la ville étend ses bras sur l’océan et semble appeler l’univers entier dans sa couche parfumée et fiévreuse, pour aider á l’agonie d’un monde et á la formation des siécles nouveaux. [La ciudad extiende sus brazos sobre el océano y parece llamar al universo entero a su lecho perfumado y febril, para que suavice la agonía de un mundo y ayude a la formación de los siglos venideros].

Camino del Serapeo, donde de ordinario se encuentra a Hipatia (que recibe el nombre de Atenea en este relato), Lucio y Amarilis se tropiezan con una multitud de cristianos que expulsan de la ciudad a los judíos. Las personas que esperan a Atenea/Hipatia en la biblioteca del Serapeo hablan, alarmadas, de la secta cristiana que pretende imponer sus convicciones apoyándose en el descrédito de los templos, demasiado indulgentes, y en el abandono de las tradiciones primigenias. Recuerdan que el emperador Juliano pereció a manos de un cristiano cuando luchaba por defender los monumentos sagrados del pasado. Uno de los presentes intenta convencer a los helenos para que se defiendan de los bárbaros utilizando sus métodos, es decir, crueldad y violencia; de lo contrario esos bárbaros os aplastarán». In Maria Dzielska, Hipatia, de Alejandría, Epublibre, bigbang951, 23-7-14, tradução de José Muñoz, Proyec Scriptorium, Ex-Libris, 2004, Wikipedia.


Cortesia de Epublibre/Wikipedia/JDACT

sábado, 29 de abril de 2017

Meninas. Maria Teresa Horta. «Eh, Epaine! Daninha, ouve-os a chamarem-na num sussurro, à sua beira vazia»

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«O monstro morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector

Daninha
«(…)
Teima em imaginar no infinito um sítio onde possa ficar. Viver? Mas ela não sabe bem ainda o que isso significa. O infinito sim, e tenta chegar-se-lhe quando, sentada na clareira de um bosque de bétulas, o seu olhar claro atravessa os negrores da noite, trazendo até si pela primeira vez a lua cheia, e geme tão baixo que nem a si mesma se escuta ou sabe que ruído é aquele que parte da sua garganta, tal como quando começaram a crescer-lhe as asas, que sempre cuida de tapar da luz do dia, afastadas dos olhares desconfiados e perigosos de inquisidores sombrios, com a brusquidão e a severidade da ameaça. Ao passarem por ela, as mulheres persignam-se e seguem encostadas às paredes e aos muros, o olhar no chão, sem jamais a encararem nos olhos de azulado cristal glaciar.
Cegueira mate, afirmam, acusando-a de coisas ínvias e tenebrosas, perniciosas, num desdém equívoco. Insidiosas e matreiras, evitam-na quanto podem, a desviarem-se do seu caminho na recusa de pousarem os pés nos passos do seu trilho. Mas, pertinaz, ela não se desvia, grão de pó, noz, bago e semente, leite do peito e mágoa. Terra. Essência profética, essência poética, perturbadoras, outras vezes apenas a crueldade no seu eixo vertiginoso e devorador. A menina esquiva-se de quem dela se afasta, e teme quem lhe tem medo, recusando olhar a face de quem a acusa de se esconder da luz do dia, certos de que aprimora o escuro, convoca as trevas, num mesmo gesto arrasador embora igualmente arredio. Implacáveis juízes da tenebrosidade. Daninha, julgam-na num murmúrio, sumindo do seu lado e ela faz da fraqueza força, encolhida, enroscada em si mesma.
Eu sou o Sol e a Lua, eu sou o Mundo, eu sou o nada e o absoluto, entende, sem compreender como imaginar o futuro. Ah, as excessivas, as alumbradas!, exclamam aqueles que referem os êxtases femininos. Suas visões e vozes que ninguém mais escuta. Elas nunca se distraem nem iludem.
Depois das palavras vêm as palavras e os nomes, as expressões lídimas, a dar forma e sentido a tudo, âmago, interioridade. Água e fogo. Magma. A menina passa a usar uma pequena serpente enrolada no pulso e rubis disseminados a contaminarem-lhe os sangues, enquanto percorre os solstícios dos versos com as suas melodias interiores. Proserpina? Tal como ela raptada, sem no entanto se deixar estiolar no espaço da escuridez para onde fora arrastada. Reino das profundezas da terra onde resguardara reflexos de sol numa romã acesa.
Hades.
Tão assustadora quanto a nocturna caverna pantanosa da Hidra, caverna envenenada pelos seus sete hálitos, junto ao lago de Lerna, e talvez por isso, também, a menina tema tanto as águas iniciáticas que a natureza talha, correntezas do universo buscando as enseadas onde ela indefesa sobrevivia a custo. Escudando-se, no entanto, com a extrema beleza das auroras boreais, que sempre a conduziam de novo até ao cimo da terra, menina sôfrega a respirar o ar puro. Porque ela já dançou sobre as estrelas, garantem os anjos astrónomos. E o Princípio foi o seu início, como se tocasse o absoluto e soubesse o nada depois do caos.
Eh, Epaine! Daninha, ouve-os a chamarem-na num sussurro, à sua beira vazia. E ela que antes de nascer chorara dentro da barriga da mãe, tapa os ouvidos com cera pálida, assusta-se diante dos negrores de novo e de novo retomados. No entanto, de madrugada forma-se uma geada acompanhada de neblina translúcida, que nimba os cumes das montanhas mais altas, e uma ligeira aura rosada tece à sua volta uma levíssima teia, como se fosse um labirinto onde a pretendessem enredar para sempre.
Ariane, lembra-se de súbito, sem no entanto destrinçar aquilo que recorda daquilo que sabe mas ilude, assim tripudiando, querendo escapar ilesa a cada um dos poderes que infringe; pois mesmo sendo-lhe proibida a árvore do conhecimento, ela comeu o seu fruto, aquele que lhe dá a entender a sua condição. E o castigo devido à desobediência chega-lhe em forma de praga premonitória: ela produzirá espinhos e abrolhos! E armará traições ao teu calcanhar. Ela será o fim e o início. Menina em busca de si mesma, à sombra da árvore da vida, junto da árvore da ciência do bem e do mal, em entrega e exposição. E nada existe ocultado à sua própria beira». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

sexta-feira, 28 de abril de 2017

O Templário Negro Roberto Genovesi. «O seu nome de guerra estava desenhado em letras de fio de ouro. Dentro em pouco estará escuro»

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Colinas de Nimrim. Palestina. 25.º dia do Rabi al-Thani no ano 583 da Hégira
«(…) O pai explicara-lhe uma vez que a cor do mar não era mais do que o reflexo da do céu e que, se por magia o Sol se apagasse inesperadamente, as águas dos oceanos ficariam completamente negras como o firmamento. Mas o pai nunca lhe dissera que a terra também podia ficar da cor do céu. Por isso, Hani olhava o horizonte, estupefacto e emudecido, enquanto as lufadas de vento quente agitavam as crinas dos cavalos enfileirados na colina que dominava o caminho para Tiberíades.
Os últimos reflexos da luz do Sol que se punha atrás das muralhas de Lubia haviam-se espalhado como um gigantesco tapete cor de púrpura sobre o vale, lá em baixo. As armaduras e os elmos dos homens que ali confluíam lentamente, vindos de Manescalia, recebiam a luz avermelhada e voltavam a projectá-la para cima. Pareciam milhares de estrelas de um firmamento reflectido. Mas o espectáculo que a formação muçulmana apresentava não era inferior. À direita da longa fileira de que fazia parte, Hani conseguia avistar a mancha branca das túnicas da infantaria de apoio de Jarwajaraya, que formava destacamento com as milícias Ahdath, reunidas em todas as aldeias mais importantes da Síria. Um pouco adiante, as túnicas azuis da Rajjalah, a infantaria da cidade de Aleppo. Apesar da distância, conseguia ouvir as gargalhadas dos homens das últimas fileiras, a quem invejava a lendária frieza em batalha. Hani sentia-se entusiasmado e, ao mesmo tempo, assustado, porque daquela multidão de estandartes, armaduras, armas e cavalos deduzira que a batalha em que participaria não seria como tantas outras.
Isto sendo verdade, como alguém murmurava, que Salah ad-Din conseguira massacrar no vale mais de dez mil guerreiros, incluindo os artilheiros do Califado de Bagdade e os sapadores de Khurasan. De vez em quando, Hani levantava-se na sela, na esperança de o ver. Mesmo que, no fundo do coração, soubesse que o comandante não perderia tempo a passar em revista uma sarya de voluntários mamelucos. Não, o seu lugar era certamente à frente dos melhores soldados, daqueles que abririam as hostilidades ao nascer do Sol do dia seguinte.
Um destacamento de reconhecimento a cavalo apareceu de forma inesperada no caminho que subia a colina a sul. Os seus uniformes cor de areia levaram por alguns instantes a confusão à ordenada formação da cavalaria mameluca. Um amir na sela de um poderoso corcel negro foi ao seu encontro, detendo-se mesmo à frente de Hani. Os cristãos estão a acampar ali para passarem a noite, disse um dos batedores depois de ter levado a mão aos lábios e à testa, mas ainda não chegaram todos. Dois contingentes estão a caminho. Ainda longe. Uma trança de cabelos cor de sépia ondulava-lhe pela nuca como uma serpente que procurasse sair do elmo. O oficial muçulmano voltou-se de repente para olhar para baixo. A maré de formigas brilhantes estava a fechar-se. Não vejo o seu estandarte.
Sim, respondeu o batedor apontando para um lugar indistinto em direcção ao pôr do Sol, os soldados com a cruz ficaram na rectaguarda. Contámos três centenas. Metade a cavalo. Mas o acampamento irá acabar por receber hoje à noite não menos de cinquenta mil guerreiros, acrescentou um dos companheiros. O chefe cuspiu para o chão. Guerreiros?, perguntou, irritado. São apenas mercenários e aves de rapina a soldo de governantes decadentes. Pasto para abutres. Lançou um último olhar para os inimigos, ao longe. Os verdadeiros guerreiros são os que combatem por uma fé. Ergueu uma mão mostrando com orgulho o tiraz que prendia a manga da túnica como uma braçadeira, quase à altura do ombro. O seu nome de guerra estava desenhado em letras de fio de ouro. Dentro em pouco estará escuro. Preparemo-nos para cantar a glória de Alá.
Os batedores desaparecem na rectaguarda, e o oficial fez o cavalo virar-se. Por um instante, o seu olhar cruzou-se com o de Hani, que baixou imediatamente os olhos. Apesar de fixar os cascos da sua cavalgadura sem pestanejar, sentia que o amir continuava a observá-lo. Assim, a curiosidade fê-lo erguer novamente a cabeça. Que idade tens, rapazinho?, perguntou o oficial erguendo uma sobrancelha. O jovem mameluco tentou responder. Hesitou. Não me lembro, senhor. O oficial examinou-o demoradamente e depois irrompeu numa gargalhada. Resposta sábia. Aproximou-se de forma que os focinhos dos respectivos cavalos quase aflorassem. Ao menos lembras-te do teu nome? O meu nome é Hani, senhor. Como é possível escolher um nome como esse? O meu pai é um fiel servidor de Alá, senhor, respondeu Hani, com seriedade». In Roberto Genovesi, O Templário Negro, 2013, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-338-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

O Templário Negro Roberto Genovesi. «Non nobis Domine, non nobis, sed nomini tuo da gloriam...»

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«O cavaleiro está exausto. Deixa-se deslizar ao longo da parede da passagem subterrânea. Está húmida. Fria. As irregularidades da pedra arranham-lhe as costas como garras afiadas. Mas a dor inesperada não é suficiente para mitigar as pontadas da ferida profunda que lhe despedaçou a armadura. A mão que procura travar o sangue reconhece os sulcos escavados na cota de malha. A marca de uma recordação que o faz estremecer. Um frémito incontrolável percorre-lhe os dedos ao longo dos tendões e volta a subir-lhe até ao pescoço como um lagarto assustado. Antes que os estremeções se acalmem, o braço volta a cair ao longo do corpo. Em intervalos cada vez mais distantes, envoltos num hálito branco, abrem caminho na escuridão que há muito engoliu a última chama esbatida do archote. E uma cantilena começa a bailar-lhe na cabeça. Apesar de tentar desesperadamente varrer as suas palavras.
Non nobis Domine, non nobis, sed nomini tuo da gloriam...
Semicerra os olhos para dominar um riso nervoso. Alguns ataques de tosse, que lhe fazem estremecer a garganta e que o elmo transforma em trovões aos seus ouvidos. Tenta levantá-lo com a mão que ainda agarra a espada, mas as forças não lhe querem assistir. Tenta fazer uma alavanca com o guarda-mão no escapulário. A lâmina cintila, agitando-se no escuro. Ergue-se, depois cai, raspa o terreno com a ponta desfeita e finalmente cai aos seus pés. O tilintar do aço confunde-se com um som que chega vindo de longe. Do outro lado do corredor subterrâneo. Aquele que deixou para trás, sulcando-o com um rasto vermelho. Lívido de luz. Entranhado do seu cheiro.
Propter misericordiam tuam et veritatem quam...
Ainda não os consegue ver, mas pressente-os. Dentro em pouco, tudo estará terminado. Assim, pede ao seu corpo um último esforço. À cabeça, um último movimento. Suficiente para enquadrar, através das fendas do elmo, a abertura do caminho escavado na rocha. Aperta os dentes e levanta as mãos. Sufoca subitamente um grito quando o elmo se afasta do pescoço com um estalar de ossos. O bacinete rola por terra, fazendo outro barulho, mas a lufada de ar fresco no rosto é a carícia de um anjo e faz-lhe esquecer o receio de que o tenham ouvido.
Ne dicant gentem ubi est deus eorum...
Aquilo que esperava não é aquilo que vê. Dois pequenos braços amarelos envolvidos numa espiral de pelo branco. Pequenos alfinetes luminescentes de início. Depois pérolas de água, grandes como pedras preciosas. O gato desloca-se, seguro, para parar mesmo em frente à parede de pedra. Observa demoradamente os traços cor de ébano do homem. Reconhece a sua familiaridade, apesar das trevas do subsolo. Consegue mesmo ver a brancura da túnica que o envolve. Relaxa os bigodes e encrespa a cauda. Em passo aveludado, roça-se pelas pregas do manto, camuflando-se na cor do tecido. O cavaleiro interrompe a respiração por um instante para avaliar a surpresa. Devia ter percebido que não eram eles. Eles não se mexem como nós. Eles não são como nós.
Deus autem noster in celo universa qui voluit fecit...
O sangue continua a escorrer. A vista começa a turvar-se. O gato volta a investigar, curioso, o vulto do homem ferido. Depois volta-se para emitir um miado. Também ele se apercebeu de que estão a chegar. Mas não acontece nada. Há tempo, portanto. Para aquela cantilena irritante, de continuar a dançar. Para as recordações, de aflorarem como instrumentos de tortura. Pelo medo da morte, de confabular com a sua sombra. O elmo rola para longe, a testa inclina-se muito lentamente para diante, enquanto as pálpebras se tornam pesadas. O olhar já turvo cai sobre a cruz que traz cosida no peito. Da mesma cor do sangue que abandona o seu corpo juntamente com a vida. Não há nada pior do que morrer a orar a um deus em que já não se acredita. Um deus para o qual tudo teve um princípio. Noutro tempo, noutra vida...» In Roberto Genovesi, O Templário Negro, 2013, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-338-7.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Meninas. Maria Teresa Horta. «Águas reptis de alma vivente, e aves que voem sobre a terra, debaixo do firmamento do céu»

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«O monstro morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector

Lilith
«(…) Nascidas de um oceano malva, as vagas entretanto formadas sobem e avizinham-se tomando altura, submergem o que encontram, misturam-se umas nas outras, enormes e definitivas, transportando-me consigo: retalhando o tempo, galgando e descendo num equívoco escorregar tropeçado; caudal feroz, implacável, que me cega, miserável, náufraga impelida contra-vontade a negar a nossa afeição, constrangida ou oferecida ao total negrume humedecido e fervente que me cerca. Perco-me de ti. Ou serás tu que me expulsas, farta da minha obstinada presença? Imediatamente arrependo-me das recriminações, do desagrado a que cheguei a entregar-me, das dúvidas que me ocorreram a teu respeito. Recuo de desprazer, apesar de as antigas suspeitas se confirmarem: expatrias-me, apartas-te, abres mão de mim. Assim, num último assomo de revolta, desobedeço ao teu corpo: agarro-me às roseiras das suas margens, aos goivos a tua placenta, aos rubis dos teus vasos sanguíneos, deixo de respirar…
Debruço-me, finco os calcanhares no teu limoso chão, e apercebendo que me afogo cuspo, vomito, arfante, os últimos sucos. Mas nem isso me demove: acocorada, agachada nas tuas fundações suponho-me ocultada pelo vulto uterino, pelo galope apressurado do teu coração, e sufocada encosto-me, colo-me aos teus muros, presa de uma teimosia que poderá ser o fim de ambas. De longe chegam vozes desconhecidas, assustosas, os sussurros distorcidos, as ininteligíveis ordens dadas em surdina. Aterrada, sou impelida para a frente na determinação de me arrancarem à linfa nacarada e opalina do teu interior, como se me quisessem salvar de ti, para quem afinal continuo a tentar correr. Não detectando o que me dói mais, se aquilo que entendo ser o teu rejeite, se o pavor do perigo que pressinto a espreitar-me na pressa, no torvelinho que me envolve, me arremessa e arrasta. Espaço revolto por onde atordoada me atiro num delíquio, sentimento do qual desconheço o nome.
E estilhaçadas as brumas e as névoas, atinjo a luz de uma brancura incandescente que toma conta de tudo à sua volta, distorcendo a avidez, deturpando as emoções, encrespando os sentidos. Precipício na borda do qual desemboco ofuscada, apavorada com aquilo que tomo como sendo a maior de todas as ameaças. Escancaro novamente a boca para inspirar e não consigo; aflita busco a tua ajuda, mas tal como te lembro deixaste de existir. Tudo o que conhecia, aliás, já terminou: os espaços distorceram-se, as cores mudaram, as pistas confundiram-se, os sinais alteraram-se.
O frio invadiu o lugar do fogo, a doçura foi trocada pela rudeza e o embalo pela dureza desabrida. Em contrapartida, à minha passagem despontam as silvas, a perversidade das urtigas, as ervas daninhas, as garras aceradas, as acutilâncias ríspidas e fragosas, nas quais, desprotegida, me firo e corto e queimo, me pico e arranho, garganta contraída e forçada por emudecidos soluços que a violentam em haustos e depois se entrançam, e quando o grito sai e rola finalmente liberto, logo retorna ao seu começo, repetindo-se nessa urgência, transportando consigo um muco grosso que me abafa, a descortinar no palato o resto do teu dolente gosto amendoado. E sem conseguir precisar o que me cerca, ergo os braços ensanguentados, pegajosos da seiva viscosa da tua placenta, e levo os punhos fechados ao queixo molhado pelos líquidos, os líquenes da tua intimidade. Resvalando, deslizando, apercebendo-me de estar a perder a memória; mas inconsciente ainda de estar a aproximar-me, cada vez mais e mais, do perfeito abandono a que leva o nascimento.

Daninha
Depois das palavras estão as palavras, caminho ou atalho ou trilho por onde escapa o pensamento, num desassossego, num avassalamento, numa invenção de outros universos e céus antigos, onde se misturam planetas, nebulosas, mundos inventados, habitados pela estranheza dos seres mínimos ou de monstruosos animais cruentos; universos destruídos por dilúvios, tempestades, rochas incandescentes e montes, serras, cimos de vomitarem fogo. Vulcões com o seu intenso cheiro a cinzas, a lava, a enxofre. Forja de lume. E as trevas cobriram a face do abismo. Iludindo a luz com o maior negror, por onde os mares corriam num rugido insustido. Até ao separar das águas.

Águas reptis de alma vivente, e aves que voem sobre a terra, debaixo do firmamento do céu.

E a menina entra para dentro de cada palavra e existe mesmo antes de nascer e sair do lugar de claridade coada, no interior do corpo materno. Deméter? No início ela chorara muito. Ainda na barriga da mãe, porque isso é dado acontecer a quem como ela comporta a diversidade, a diferença; voraz, desacertada no mundo que a pretenderá mudar, a sufocará e a acanhará tanto, que por vezes parece querer tirar-lhe o ar do peitinho liso, de tão justa que a vida lhe fica.
Modo de ela ser na teima e no cardo da alma, a tomar para si o tumulto das alvas, dos eclipses, dos equinócios, dos espinhos e das farpas, deslizando junto dos enigmas que desconhece, dotada de um outro entendimento, de uma outra visão impossível. Gosta de olhar as constelações, estrelas de navegação e nebulosas nos mapas astrais, por onde correm os linces e as panteras da escuridade. A encontrá-las no espaço, cintilando de estrelas, de asteróides, de cometas…
Cruzeiro do Sul, Cisne e Cassiopeia».
In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

Meninas. Maria Teresa Horta. «A guiares-me os jeitos, a radicalizares-me as fantasias e os medos, a influenciares-me os gostos, a instigares-me à ausência apagando-me o carácter…»

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«O monstro morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector

Lilith
«(…) Torno a alinhar-me a par contigo: as duas sobrepostas. Travo amargo colhido no universo perverso da inocência, terreno onde o sentimento cede, condenando a transfiguração do nosso relacionamento. Fica a sobejar somente um vaguíssimo espaço de fluidos difusos onde absurdamente lenta me distendo, como se boiasse, mas afinal nadando em ti. Antecipando a fragilidade e o calor uma da outra. Mexes-te na escuridade onde sonhas e eu te navego pelo dentro mais fundo, nele batendo com a planta vulnerável dos meus pés. Aí esbracejo, mergulho e torno à superfície pretendendo salvar-me, e só o leve pulsar das veias das tuas virilhas me mostram a direcção do teu olhar turquesa, através do qual destrinço o que não adivinho. Inconstante tu, e eu obsessiva.
A guiares-me os jeitos, a radicalizares-me as fantasias e os medos, a influenciares-me os gostos, a instigares-me à ausência apagando-me o carácter, tentando reduzires-me à tua imagem e semelhança: clone que recusarei ser pelos trilhos da vida, destino fora; cidades das quais nada recordarei, nem das matas sombrias, nem dos bosques frondosos, territórios das fadas, nem das florestas enfeitiçadas, com árvores por trás das quais se acoitam animais selvagens, idênticos aos que existem nos quadros de Henri Rousseau. Num deles descobrir-te-ei, mulher nua, reclinada num canapé, a dialogar com os tigres. Lilith de um paraíso artificial, impondo regras que tudo confundem, embora me fusionem contigo.
Experimento separar-me, ciente da contaminação da tua languidez, ausência e superficialidade. Vazio rugoso que aceito de bom grado, prevendo-te tão bela que escaparás a todo o entendimento, com uma vagarosa fatalidade feminina de opalas e jaspe, maligna e ameaçadora. Vistorio a clausura em que me encerras, arrisco seguir o rasto das tuas estéreis e fúteis decisões apressadas, desconhecendo que, impaciente, me virás a afastar mais duas vezes, ao longo da nossa vida futura. Com uma negligência insustentável. Por segundos imagino-me desgraçada, errando com os teus fantasmas e, rodando, tento conseguir reencontrar a rosa-dos-ventos, os remos, a bússola, o rumo certo para tornar a achar-te, indo num impulso incontrolável moldar-me às tuas costas, desejando retomar o odor do teu pescoço suado, onde curtas madeixas frisadas aderem humedecidas, adensando o seu ouro de camélia e de madressilva. Respirar-te é um hábito que me há-de ficar. Enquanto o teu inconsciente traça planos, desenha mapas de crimes perfeitos, inventa as melhores maneiras de me assassinares, ignorando que te escuto os pensamentos, enrodilhada no danoso veneno das tuas células, dimensão do nada a que permiti ser reduzida, copiando-te os genes. No lugar que habitas deixaste-te adormecer, e ao acordares, transbordante de um amor incondicional, não te recordarás do ódio que me tiveste, ansiando por me atares de novo às tuas horas. Ponto dobrado sobre ponto dobrado.
Pesponto de bainha aberta na dobra do lençol de linho onde rolaremos enoveladas uma na outra, numa espécie de luta matricial, condenada. Lá fora a lua coalhada num céu azul-cobalto acobertará as lobas que defendem as crias, enquanto, através da poesia, tentarei descobrir a melhor maneira de te enfrentar nos dias vindouros, num divã de psicanalista, dando conta, atónita, das tantas fórmulas que em menina utilizei para te preservar de ti mesma. Sem remédio. A minha consciência trocada pela tua. Encolhida quase consigo esquecer-te, mas ao detectares a minha imobilidade estendes inquieta as longuíssimas pernas, deixando-me prisioneira. E como é hábito, acabo por ceder: desencosto a face do cimo dos joelhos unidos de lado, e pela primeira vez apercebo-me da necessidade cruciante de ar que começa a ganhar-me, encurralada mas já levada de rojo, apanhada pela corrente num revolteio imprevisível e desconhecido.
Confusa, tento inutilmente parar, controlar as contracções e os espasmos que me convocam, a arrastarem-me consigo; e é nesse instante que lanças um lento e distorcido brado, estridente e incontido na modulação convulsa, como se simultaneamente te admirasses quando o ouves. Aturdida, cuido de reencontrar o ar que entretanto deixou de circular através da tua respiração, deslizando-te na língua, curvo-me sob a pressão aflita dos dedos crispados com os quais me primes as omoplatas num abraço imobilizador, sem a preguiça dos habituais movimentos pesados aos quais nunca te adaptaste, mas a que eu aprendera a ajustar-me». In Maria Teresa Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

Conheces Sancho? Maria Helena Ventura. «Sempre que Alvar partia, era em Sancho que pensava; de cada vez que me possuía, era Sancho que eu desejava»

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«(…) Andaria pelos vinte anos, de semblante fechado como se fosse cativo de um mundo subterrâneo. Mas quando os nossos olhos se cruzaram, foi como se um sol intenso rasgasse o negro véu que tapava a minha juventude. Senti logo por ele a mais serena explosão de afecto. Entendo, seria amor... mas para o sentirdes, nada vos ligaria a Alvar Pérez Castro, a não ser o contrato de casamento. Eu não diria melhor, padre Pelayo... habituava-me a um senhor que me impuseram, por quem chegara a sentir repugnância logo que me tomava. O clérigo ajeita o corpo ao banco, incomodado com o pormenor. Adiante, senhora... e depois?
Depois conversava com Sancho durante meia hora, ríamo-nos de coisas insignificantes, discutíamos o sentido da vida, os valores mais importantes. Coincidiam, quereis dizer? Dei comigo a pensar nos desencontros da vida, ou nos encontros tardios. Cada um para seu lado e no entanto compatíveis. Descansai um pouco, senhora, interrompe o clérigo de bochechas coradas, de novo perturbado com o rumo da conversa. Ainda não, padre Pelayo. Sempre que Alvar partia, era em Sancho que pensava; de cada vez que me possuía, era Sancho que eu desejava. Calai-vos um pouco, senhora dona Mencia, precisais de descansar. Rodrigo Gonçalves Girão, meu cunhado e privado de meu tio, era um grande aliado, ele e meu pai, que me trazia notícias da fronteira.
Mas vosso irmão Diego, que agora serve el-rei Afonso, não se hostilizou com Fernando pela protecção que ele dava a esse desconcerto? Que desconcerto, Pelayo? Consegue soerguer-se, movida pela indignação E cristão implodir um sentimento puro e recíproco, como se fosse o maior pecado, e ninguém condena a entrega de uma menina, mal desabrocha para a idade núbil, a um varão senil e libidinoso sem ouvir a vontade dela? Não foi isso que eu quis dizer, senhora... Meu irmão revoltou-se contra nosso tio por ele lhe quitar Rioja…, de minha correspondência inofensiva com Sancho, nunca chegou a saber. Depois ficastes viúva... Antes disso as searas verdejaram e amadureceram muitas estações, os pomares tomaram cor e deram fruto. Mas nunca esquecestes o rei de Portugal... Não, sempre pensei em Sancho com ternura, como ele pensava em mim. Faz um intervalo para encher o peito de ar e retoma com dificuldade dona Beatriz morreu antes da sogra, já Sancho mergulhava no Algarve. Ouvi dizer que era valente, na guerra... Já ninguém fala dos feitos, mas foi por sua vontade que alargaram metade do território, enquanto mostrava ser um digno cruzado das campanhas da Ibéria, afastava-se das violentas intrigas que dilaceravam o reino. Não tinha vida serena, vosso esposo.
Não…, procurava apaziguar descontentamentos antigos, fazia acordos instáveis com o bispo do Porto e o arcebispo de Braga, lidava com os excessos praticados em seu nome. Meu tio acreditava que eu lhe traria a paz de que tanto carecia e que ele me daria a estabilidade que até ali me faltara. E por que ninguém soube do vosso casamento, senhora? Só não soube dona Berenguela, a quem faltava saúde mas sobrava determinação: mal ouvia rumores do nosso entendimento, tratava de aconselhar Sancho a esquecer-me. E já lhe procurava esposa em França, com ajuda da irmã, dona Branca. Respira de novo com dificuldade. Tivemos a bênção de outra escolha da rainha-mãe de França para segunda esposa de meu tio, dona Joana d’Aumalle. Sabendo do temperamento da sogra, que procurou dominá-la mal ela chegava ao paço, tudo fez para a contrariar, apoiando a minha união com Sancho.
Mas aonde param as escrituras do enlace, era a isso que eu me referia... Os documentos..., até aqui em Palencia, cidade que meu pai ajudou a fundar, sofreram perseguição e vós sabeis..., levaram o mesmo caminho dos outros registos da cúria de Sancho. Inclina agora o rosto na direcção do padre, com a ponta do queixo a roçar o ombro esquerdo. É por isso que vos peço tanto cuidado com aquelas escrituras... Podeis descansar, senhora, já mandei chamar o destinatário, conforme me pedistes, mas disseram-me que andava por Aragão, onde teria casado...
Gostava tanto de vê-lo..., seria como ver Sancho, de novo. Ao menos fostes feliz com o vosso rei? Sancho era diferente de todos os varões que eu conhecera. Tinha uns olhos meigos, tristes como os de um orfão... Que o era, dona Mencia. Não..., digo de um órfão de família inteira. Hoje, com este último sopro de vida, posso dizer que fomos ditosos durante o tempo que nos foi concedido. E o que mandais que se faça, senhora?» In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Abadia dos Cem Pecados. Marcello Simoni. «O que vos traz à minha presença, com essa perna tão magoada? Uma notícia funesta. Vejo, porém, que estais ocupado, e não desejo ser inoportuno»

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A pedra do exílio
Planalto de Crécy. 26 de Agosto de 1346
«(…) Dois homens conversavam na sacristia da igreja abandonada, sob a luz filtrada por uma janela geminada. O rei Filipe VI de Valois era o mais alto. Ainda trazia a armadura vestida e a sobreveste azul com as flores-de-lis douradas de França e gesticulava como que à beira de um acesso de raiva. O aristocrata que se encontrava consigo, de modos mais pacatos, estava por sua vez envolvido num elegante capote escuro que destacava a carnação clara e os cabelos ruivos. Maynard tentou lembrar-se de onde já o havia visto, embora a sua principal preocupação, naquele momento, consistisse em manter um porte digno na presença, do soberano. Para isso recusara apoiar-se no rapaz e procurara um cajado, de modo a caminhar erecto, sem forçar a perna esquerda. Empresa nada simples, sobretudo tendo de enfrentar as escadas no interior da igreja.
Ao ver o monarca envolvido numa conversa, pensou recuar e procurá-lo mais tarde. Depois lembrou-se de que a sua presença poderia ter sido notada. Vossa majestade, disse, com uma vénia embaraçada, peço audiência. Rocheblanche, o rei fez-lhe sinal para que avançasse, pensávamos que tivésseis caído em batalha. Estou vivo por milagre, majestade. O monarca examinou-o dos pés à cabeça. O que vos traz à minha presença, com essa perna tão magoada? Uma notícia funesta. Vejo, porém, que estais ocupado, e não desejo ser inoportuno.
Não façais cerimónia. Filipe VI apontou para o homem a seu lado. Este é o nobre Karel, conde do Luxemburgo. O filho do rei da Boémia. Podeis falar livremente na sua presença. Maynard observou com atenção o rosto do homem de cabelos ruivos e recuou um passo. Nem ao meu filho, intimara Jang de Blannen. Karel do Luxemburgo conservava os mesmos traços do pai, embora menos altivos e decerto não tão harmoniosos. Tinha um nariz demasiado grande, a testa descoberta pela calvície e as maçãs do rosto excessivamente pronunciadas. Contudo, foram os olhos azuis, arregalados e salientes, a deixá-lo de pré-aviso.
Então, Rocheblanche?, incitou-o o rei, contrariado pela sua hesitação. Que notícia nos trazeis? O cavaleiro manteve o olhar fixo no príncipe Karel, envolvido numa inesperada sensação de desconforto. João I da Boémia está morto, e baixou a cabeça em sinal de luto. Filipe VI cruzou os braços sobre o peito. Tendes a certeza, senhor? Nós pensamos que terá caído nas mãos dos ingleses. Infelizmente, mais do que a certeza, confirmou Maynard. Dei com o seu corpo martirizado enquanto tentava abandonar o campo de batalha. Karel interveio sem denunciar qualquer emoção. Era já cadáver? Antes de responder, o cavaleiro teve a impressão de que o príncipe se afastava lentamente do feixe de luz, como que para se esconder.
Ainda não, alteza. Falou-vos? Poucas palavras, mentiu Maynard, apenas para encomendar a alma a Deus. Algo na inflexão daquela pergunta deixara-o de sobreaviso. Sim? O rosto de Karel eclipsava-se na sombra. O meu nobre pai era um homem de muitos segredos. É estranho que não vos tenha confiado nenhum quando estava prestes a morrer. Rocheblanche encolheu os ombros. Embora ardesse de vontade de referir as palavras de Jang de Blannen, um pressentimento incitou-o a calar-se. E se se encontrasse precisamente diante do artífice da conspiração? O príncipe encostou um punho ao queixo, enrugando a testa.
Então dizeis que expirou rezando, continuou, pensativo. Como um homem comum. Como um valoroso guerreiro, precisou Maynard, dirigindo-se ao rei de França para interromper um discurso potencialmente insidioso. Um homem corajoso de quem devemos tirar o exemplo. É uma referência à nossa retirada?, replicou o rei, irritado. Salientava apenas a lição de coragem, majestade. A coragem não é sinónimo de inteligência estratégica, comentou o monarca. E creio que Karel do Luxemburgo está pronto a admitir que o seu nobre progenitor se sacrificou para concretizar uma proeza estúpida.
Não por uma proeza, inflamou-se Maynard, sentindo desprezar os valores com que crescera. Mas para incitar os homens ao ataque. Filipe VI abanou a cabeça. Conduziu-os ao massacre quando os dados já estavam lançados. Expôs a cavalaria aos arqueiros de Eduardo III. Sei-o perfeitamente, mas... E sabeis também quantos caíram, Rocheblanche?, gritou o rei, desdenhoso. Mais de quatro mil! Quatro mil cavaleiros vossos irmãos! Os ingleses dizimaram a nossa nobreza». In Marcello Simoni, A Abadia dos Cem Pecados, 2014, tradução de Inês Guerreiro, Clube do Autor, 2016, ISBN 978-989-724-278-6.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

Conheces Sancho? Maria Helena Ventura. «Os mais novos ainda foram a tempo. Recebeu-os daí a um ano e meio em terras de Villafáfila, depois de casar com Ferrán Pérez, porteiro de dona Mecia»

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«(…) As aias partiam de Coimbra para Leão e Laredo, onde as famílias viriam, ela era encontrada em Ourém para servir a que fugazmente fora rainha de Portugal. Levada à sua presença não via rainha nenhuma, só uma mulher formosa desfeada pelo desgosto, com os olhos inchados de chorar. Daí a dias chegava Iñigo, futuro alcaide da vila, para fazer crer aos que resistiam ao infante usurpador que dona Mecia não estava cativa senão da sua vontade. Até escolhera um nobre da Vizcaya para governar o castelo da que era vila sua. O povo, escondido pelas furnas, temeroso dos vendavais da guerra, passava a acreditar no que se vinha repetindo à boca calada: a bruxa enfeitiçou el-rei e agora vira-lhe as costas. Mas o tempo em Ourém seria escasso. Em breve era obrigada a viajar sem que ninguém suspeitasse. Era a hora de assumir o curador do reino recomendado pelo papa, não havia tempo para dedicar ao sumiço da rainha. E lá partia uma manhã fria de Inverno, acompanhada pela nova aia que já muito bem lhe queria. Também, de que servia querer ficar na sua terra, junto dos seus? O pai baixara à gafaria mais próxima, a mãe e os irmãos, menores do que ela, catavam a bolota e os bagos da videira para não morrerem à fome. Partisse a filha, e haveria esperança de salvação para todos.
Os mais novos ainda foram a tempo. Recebeu-os daí a um ano e meio em terras de Villafáfila, depois de casar com Ferrán Pérez, porteiro de dona Mecia. Os pais acabaram os dias na gafaria de Coimbra, a melhor e mais humana do reino, onde criavam patos e vendiam ovos. Limpa as lágrimas rebeldes. A tristeza do passado pode ser pesado fardo se não for aliviada com uma vida ditosa. Levanta-se em direcção à parede, sob a janela do quarto. Apura o ouvido, distingue a voz miúda da ama a encadear a conversa. Só muito de longe-em-longe Pelayo se atreve a interromper, para controlar o caudal de um relato adormecido.

Memórias. Poalha de ouro do tempo
Era uma tarde na corte da rainha dona Beatriz da Suábia... De dona Berenguela, quereis dizer, não é, senhora? De dona Beatriz, sei o que digo. A rainha-mãe nunca me viu com bons olhos, ou não sabeis que minha avó, Inez lñiguez Mendoza, pariu minha mãe no ano em que dona Berenguela se casou com meu avô, rei de León? Padre Pelayo mastiga em seco. Talvez dona Mencia esteja mais lúcida do que Elvira lhe fizera crer. O melhor é deixá-la falar à vontade, diga o que disser. Haverá tempo, depois, para filtrar o sentido das palavras. Meu tio, el-rei Fernando III, propôs à mãe que eu e minhas irmãs ficássemos com as damas de dona Isabel, a sua Beatriz, que era sorridente e doce. Quando trouxe Sancho a Zamora, naquela Primavera em que firmaram o tratado do Sabugal, estava lá eu com a rainha e o infante Afonso. Nessa altura seríeis uma donzela...
Ia fazer dezasseis anos, estava casada com Alvar há mais de dois. Então vosso esposo também lá estava convosco. Não, partira essa manhã para Jérez de La Frontera com Diego Pérez Vargas, que então armou cavaleiro. E Sancho acabava de chegar, dizíeis vós... Sancho aparecia com meia dúzia de privados. Era rei e em nada o semelhava, tão tímido, tao modestamente vestido. Seria ainda novo, nessa altura.» In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT