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«O cavaleiro
está exausto. Deixa-se deslizar ao longo da parede da passagem subterrânea.
Está húmida. Fria. As irregularidades da pedra arranham-lhe as costas como garras
afiadas. Mas a dor inesperada não é suficiente para mitigar as pontadas da
ferida profunda que lhe despedaçou a armadura. A mão que procura travar o
sangue reconhece os sulcos escavados na cota de malha. A marca de uma recordação
que o faz estremecer. Um frémito incontrolável percorre-lhe os dedos ao longo dos
tendões e volta a subir-lhe até ao pescoço como um lagarto assustado. Antes que
os estremeções se acalmem, o braço volta a cair ao longo do corpo. Em intervalos
cada vez mais distantes, envoltos num hálito branco, abrem caminho na escuridão
que há muito engoliu a última chama esbatida do archote. E uma cantilena começa
a bailar-lhe na cabeça. Apesar de tentar desesperadamente varrer as suas palavras.
Non
nobis Domine, non nobis, sed nomini tuo da gloriam...
Semicerra
os olhos para dominar um riso nervoso. Alguns ataques de tosse, que lhe fazem estremecer
a garganta e que o elmo transforma em trovões aos seus ouvidos. Tenta levantá-lo
com a mão que ainda agarra a espada, mas as forças não lhe querem assistir. Tenta
fazer uma alavanca com o guarda-mão no escapulário. A lâmina cintila, agitando-se
no escuro. Ergue-se, depois cai, raspa o terreno com a ponta desfeita e finalmente
cai aos seus pés. O tilintar do aço confunde-se com um som que chega vindo de
longe. Do outro lado do corredor subterrâneo. Aquele que deixou para trás, sulcando-o
com um rasto vermelho. Lívido de luz. Entranhado do seu cheiro.
Propter
misericordiam tuam et veritatem quam...
Ainda
não os consegue ver, mas pressente-os. Dentro em pouco, tudo estará terminado.
Assim, pede ao seu corpo um último esforço. À cabeça, um último movimento.
Suficiente para enquadrar, através das fendas do elmo, a abertura do caminho escavado
na rocha. Aperta os dentes e levanta as mãos. Sufoca subitamente um grito quando
o elmo se afasta do pescoço com um estalar de ossos. O bacinete rola por terra,
fazendo outro barulho, mas a lufada de ar fresco no rosto é a carícia de um anjo
e faz-lhe esquecer o receio de que o tenham ouvido.
Ne
dicant gentem ubi est deus eorum...
Aquilo
que esperava não é aquilo que vê. Dois pequenos braços amarelos envolvidos numa
espiral de pelo branco. Pequenos alfinetes luminescentes de início. Depois pérolas
de água, grandes como pedras preciosas. O gato desloca-se, seguro, para parar
mesmo em frente à parede de pedra. Observa demoradamente os traços cor de ébano
do homem. Reconhece a sua familiaridade, apesar das trevas do subsolo. Consegue
mesmo ver a brancura da túnica que o envolve. Relaxa os bigodes e encrespa a
cauda. Em passo aveludado, roça-se pelas pregas do manto, camuflando-se na cor
do tecido. O cavaleiro interrompe a respiração por um instante para avaliar a surpresa.
Devia ter percebido que não eram eles. Eles não se mexem como nós. Eles não são
como nós.
Deus
autem noster in celo universa qui voluit fecit...
O sangue
continua a escorrer. A vista começa a turvar-se. O gato volta a investigar,
curioso, o vulto do homem ferido. Depois volta-se para emitir um miado. Também
ele se apercebeu de que estão a chegar. Mas não acontece nada. Há tempo, portanto.
Para aquela cantilena irritante, de continuar a dançar. Para as recordações, de
aflorarem como instrumentos de tortura. Pelo medo da morte, de confabular com a
sua sombra. O elmo rola para longe, a testa inclina-se muito lentamente para diante,
enquanto as pálpebras se tornam pesadas. O olhar já turvo cai sobre a cruz que traz
cosida no peito. Da mesma cor do sangue que abandona o seu corpo juntamente com
a vida. Não há nada pior do que morrer a orar a um deus em que já não se acredita.
Um deus para o qual tudo teve um princípio. Noutro tempo, noutra vida...» In
Roberto Genovesi, O Templário Negro, 2013, Clube do Autor, 2017, ISBN
978-989-724-338-7.
Cortesia de
CdoAutor/JDACT