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«Portanto, só os ciclos eram
eternos. (Na prova oral de Aptidão à Faculdade de Letras, em Lisboa, o examinador
fez uma pergunta ao futuro escritor. Este respondeu hesitantemente, iniciando com
um portanto. De onde é o senhor?, perguntou o professor, ao que o escritor
respondeu, de Angola. Logo vi que não sabia falar português; então desconhece que
a palavra portanto só se utiliza como conclusão dum raciocínio? Assim mesmo,
para pôr o examinando à vontade. Daí a raiva do autor que jurou um dia havia de
escrever um livro iniciando por essa palavra. Promessa cumprida. E depois deste
parêntesis, revelador de saudável rancor de trinta anos, esconde-se definitiva e
prudentemente o autor.)
Era um
dia particularmente luminoso e quente para um Abril lisboeta. Na véspera tinha chovido
toda a noite, o que era próprio da estação, mas hoje o Sol nascera num céu tão
azul que até doía não poder voar. Sara abriu os braços descobertos. Inútil, não
nascera pássaro. Decidiu caminhar um pouco, até à próxima paragem do autocarro,
para gozar o sol e o calor. Ali, perto do Hospital Universitário, havia pouca gente
nas ruas. Gente bisonha, que ia para o hospital ou dele vinha. Preocupados com
alguma doença, real ou suposta. Se não têm nenhuma, preocupam-se pela que terão
no futuro. O português precisa sempre de qualquer coisa para estar melancólico.
E se não for a saúde, é a família, ou então o emprego. Povo triste, pensou Sara.
É do regime político ou é a essência da gente? Não vamos também culpar o salazarismo
de tudo. O próprio Salazar já era tristonho, cinzento, antes de criar o seu cinzento
regime.
Regime
de eclesiásticos e militares graves, o que convém para um povo de camponeses com
pouca terra. Assustou de repente: estas ideias não serão reaccionárias? Tinha de
perguntar ao Aníbal, ele era obrigado a ser especialista dessas coisas. Mas que
são tristes, são. Que diferença com a esfuziante alegria dos africanos, o que os
faz passar por irresponsáveis. Também não era verdade. O Aníbal, por exemplo,
sempre agarrado aos livres e às ideias, não era um tipo alegre. E era de Luanda,
a cidade das mil loucuras... Malongo sim, Malongo era um tipo alegre, até demais.
Sara sorriu para o céu, para as pessoas que nela não reparavam, metidas para dentro».
In
Pepetela, A Geração da Utopia, 1992, Publicações don Quixote, Leya, 2016, ISBN
978-972-206-038-7.
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