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Ensaio sobre a justificação noética do
juízo de percepção externa em S. Tomás de Aquino
Resumo.
O pensamento de José Enes tem procurado compreender os fundamentos mais
substantivos do mundo e do homem na forma como o ser se revela. Adoptando um
procedimento de inspiração fenomenológica, sucessivos momentos de À Porta do
Ser conduzem à sua compreensão. Particular atenção é concedida à função do
intuito na captação originária do apercebimento do ser, em contraposição à
discursividade da razão, que obscurece as promessas de luminosidade que este
primeiro momento deixa transparecer. É neste contexto que o sentir deixa
transparecer a sua singular importância. A capacidade de apreender a existência
da realidade coloca os sentidos na linha do intuito intelectual e afasta-os da
função representativa que eles não possuem.
[…]
«Mais
cônscio da condição humana do intérprete e das exigências vitais, a que a
vocação de um pensador deve satisfazer ao inserir-se na evolução do pensamento,
se mostra Karl Rahner ao afirmar: se este esforço ao redor da doutrina de S.
Tomás não deixa, apesar de tudo, de ser uma investigação histórica, é-o, precisamente,
como investigação filosófica. Não nos interessa, pois, o Tomás ligado ao seu tempo,
dependente de Aristóteles, de Santo Agostinho e da filosofia do seu momento histórico.
Existe sem dúvida esse Tomás. E por bem damos que a investigação histórica se
ocupe dele. Todavia, justificadamente ou não, pode-se duvidar se, pelo mero caminho
da investigação histórica, é possível alcançar o realmente filosófico em
Tomás... Para se apropriar do propriamente filosófico de um filósofo, só um caminho
é viável: mergulhar os olhos com ele nas coisas mesmas. Só assim se pode entender
o que ele pensava. Não temos a intenção, portanto, de captar tudo o que Tomás
disse aqui e acolá, com a mesma apreciação indeferenciada, para classificá-lo depois
numa ordem puramente exterior. Não se alcança assim o original acontecer filosófico
que em Tomás se produziu. O que importa é outra coisa: desde o originário ponto
de partida da sua filosofia, com frequência bem pouco explícito, tornar a conceber
esta de novo em seu concreto crescimento. Com respeito a S. Tomás, o propósito e
o método de Rahner assumem uma particular significação a partir do facto de que
o Aquinatense não elaborou uma filosofia pura, senão que a pensou ao elaborar a
sua teologia. Uma destrinça de textos e o acerto no ponto de vista fundamental e
originante no sector estritamente filosófico tornam-se, por isso mesmo, necessários.
O que se pretende, porém, é repensar o que foi já pensado explicitamente ou,
por vezes, implicitamente, em ordem à elaboração sistemática que teria sido alcançada
pelo próprio S. Tomás, se o seu pensamento houvera sido encaminhado por esse exclusivo
almejo.
É um
recolocar-se dentro do seu espírito, a fim de pensar como ele teria pensado, na
hipótese de poder regressar ao momento do seu acontecer filosófico. Procura-se,
portanto, repensar o pensado naquele modo original com que aflorou pela primeira
vez na obra do Aquinatense. Tal exegese é uma interpretação que medeia entre o interpretado
e o leitor do intérprete com a intenção de transmitir o originalmente pensado. Claro
que ao leitor não será fácil distinguir entre ambos: onde fala S. Tomás e onde fala
Rahner. Mas semelhante ambiguidade está na essência da mesma interpretação e, como
tal, querida pelo intérprete não só como condição inevitável, senão e mais
propositadamente como índice de autenticidade interpretativa. As duas formas de
interpretação, diferenciadas embora pela intenção e pelo método, comunicam naquilo
que ao fim e ao cabo, na hipótese de resultarem válidas, ambas realizam: a exposição
sistemática do pensamento sistematicamente elaborado em expressão linguística.
Quer isto dizer que ambas se situam no plano da linguagem predicativa e se atêm
ao pensado, haja este sido antes já ou não ainda pensado. O apreciar de tais
interpretações agencia-se no encarecimento da riqueza do impensado que se tornou
então pensado. Consequentemente, a grandeza da obra do pensamento será avaliada
pela riqueza do pensado». In José Enes, À Porta do Ser, Ensaio
sobre a justificação noética do juízo de percepção externa em S. Tomás de
Aquino, 1969, Difusão Dilsar, Lisboa, FCG, Edições Colibri e Universidade dos
Açores, 2006, ISBN 978-972-772-607-0.
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