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1754-1758
«(…) Punha-se em bicos dos pés para percorrer com os
dedos pequenos e finos a risca colorida que a luz do pino da tarde emprestava
ao cimo da parede branca, fazendo uma sinuosa estrada de claridade; sol a
tentar esgueirar-se por entre as portadas de madeira mal fechadas da janela de
sacada, que dava para o sossego tépido de um jardim de rosas-chá e narcisos, de
vasos de miosótis (da família das boragináceas, de flores azuis ou rosadas) simples
e violetas. Leonor imaginava tocar o arco-íris, onde via dançar uma poalha
luminosa e translúcida, semeada de minúsculos e trémulos pontos rosados e
cintilantes, que pareciam fugir para irem extinguir-se nos lugares mais
obscuros do quarto.
Vindo das funduras do corredor, trepando pelas escadas
e passando pelas frinchas da porta de madeira ferida, chegava-lhe o volátil
odor do arroz-doce cerzido pelo cheiro do pudim de leite coalhado coberto de
caramelo, que a cozinheira fazia para o lanche. Na boca crescia-lhe, gulosa,
uma aguadilha ávida. Voraz também de rosas vermelhas, das quais devorava as
pétalas às escondidas. Noutras tardes era o odor espesso do bolo podre que se
abeirava da cama da sesta, e que ela num jogo de faz-de-conta fingia substituir
pelos melindes e os rebuçados de ovos, lambendo o coral dos lábios.
Sem dar por ruídos nem cheiros, Maria dormia obediente
e quieta, de lado e encolhida, as pestanas espessas a sombrearem-lhe a face
delicada. De onde estava, Leonor mal distinguia o vulto
da irmã, que entretanto atirara para trás a manta fraca, cabeça apoiada no
almofadão de linho branco bordado a crivo que os bastos cabelos castanhos,
soltos das fitas e dos ganchos de prata, quase tapavam. Entregue aos seus
sonhos de anjos e aparições, que sempre evitava contar. Sem o
confessar a si mesma, Leonor Lorena prefere o menino, por enquanto manso ao
embalá-lo nos braços. As meninas sempre foram mais soltas, mais ávidas e amigas
de buscarem o riso fora do seu espaço; tão diversas de si própria quando
pequena, como elas são hoje, que por vezes nem as reconhece dos mesmos sangues,
de as ter parido e trazido nove meses na barriga.
Mas
ela não se permite ter sentimentos e pensamentos indevidos, e desavinda consigo
mesma desvia os olhos de Pedro, adormecido, cabeça a descansar-lhe no colo.
Consciente de não conseguir afastar de si um inconfessado júbilo por ter gerado
finalmente um filho varão, seguidor de nome e títulos de nobreza paterna.
Orgulhosa da alegria que sabe ter dado ao marido, para quem pode agora olhar a
direito, numa sensação plena de dever cumprido. E no entanto, João nem parece
especialmente satisfeito com o nascimento de Pedro, sem sequer se inibir de
mostrar uma clara preferência pela filha mais velha, com quem é muito unido. Na
verdade, ele e Leonor partilham alguns gostos e preferências, pois embora ela
seja ainda tão pequena, guarda a mesma inclinação pela natureza que o Pai, com
quem passa noites a olhar as estrelas. Desagradada com o rumo dos seus
pensamentos, Leonor Lorena apressa-se a desviá-los e, insatisfeita, inclina-se
de novo sobre o filho adormecido, rapazinho tranquilo que a olha por vezes com
um longo olhar triste, a apertar-lhe de apreensão o coração materno». In
Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio
D. Dinis I, ISBN
978-972-204-733-3.
Cortesia de PdQuixote/JDACT