sexta-feira, 7 de abril de 2017

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «De onde estava, Leonor mal distinguia o vulto da irmã, que entretanto atirara para trás a manta fraca, cabeça apoiada no almofadão de linho branco»

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1754-1758
«(…) Punha-se em bicos dos pés para percorrer com os dedos pequenos e finos a risca colorida que a luz do pino da tarde emprestava ao cimo da parede branca, fazendo uma sinuosa estrada de claridade; sol a tentar esgueirar-se por entre as portadas de madeira mal fechadas da janela de sacada, que dava para o sossego tépido de um jardim de rosas-chá e narcisos, de vasos de miosótis (da família das boragináceas, de flores azuis ou rosadas) simples e violetas. Leonor imaginava tocar o arco-íris, onde via dançar uma poalha luminosa e translúcida, semeada de minúsculos e trémulos pontos rosados e cintilantes, que pareciam fugir para irem extinguir-se nos lugares mais obscuros do quarto.
Vindo das funduras do corredor, trepando pelas escadas e passando pelas frinchas da porta de madeira ferida, chegava-lhe o volátil odor do arroz-doce cerzido pelo cheiro do pudim de leite coalhado coberto de caramelo, que a cozinheira fazia para o lanche. Na boca crescia-lhe, gulosa, uma aguadilha ávida. Voraz também de rosas vermelhas, das quais devorava as pétalas às escondidas. Noutras tardes era o odor espesso do bolo podre que se abeirava da cama da sesta, e que ela num jogo de faz-de-conta fingia substituir pelos melindes e os rebuçados de ovos, lambendo o coral dos lábios.
Sem dar por ruídos nem cheiros, Maria dormia obediente e quieta, de lado e encolhida, as pestanas espessas a sombrearem-lhe a face delicada. De onde estava, Leonor mal distinguia o vulto da irmã, que entretanto atirara para trás a manta fraca, cabeça apoiada no almofadão de linho branco bordado a crivo que os bastos cabelos castanhos, soltos das fitas e dos ganchos de prata, quase tapavam. Entregue aos seus sonhos de anjos e aparições, que sempre evitava contar. Sem o confessar a si mesma, Leonor Lorena prefere o menino, por enquanto manso ao embalá-lo nos braços. As meninas sempre foram mais soltas, mais ávidas e amigas de buscarem o riso fora do seu espaço; tão diversas de si própria quando pequena, como elas são hoje, que por vezes nem as reconhece dos mesmos sangues, de as ter parido e trazido nove meses na barriga.
Mas ela não se permite ter sentimentos e pensamentos indevidos, e desavinda consigo mesma desvia os olhos de Pedro, adormecido, cabeça a descansar-lhe no colo. Consciente de não conseguir afastar de si um inconfessado júbilo por ter gerado finalmente um filho varão, seguidor de nome e títulos de nobreza paterna. Orgulhosa da alegria que sabe ter dado ao marido, para quem pode agora olhar a direito, numa sensação plena de dever cumprido. E no entanto, João nem parece especialmente satisfeito com o nascimento de Pedro, sem sequer se inibir de mostrar uma clara preferência pela filha mais velha, com quem é muito unido. Na verdade, ele e Leonor partilham alguns gostos e preferências, pois embora ela seja ainda tão pequena, guarda a mesma inclinação pela natureza que o Pai, com quem passa noites a olhar as estrelas. Desagradada com o rumo dos seus pensamentos, Leonor Lorena apressa-se a desviá-los e, insatisfeita, inclina-se de novo sobre o filho adormecido, rapazinho tranquilo que a olha por vezes com um longo olhar triste, a apertar-lhe de apreensão o coração materno». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT