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Consideradas as simplificações e complexidades possíveis a esta primeira
leitura, consideraremos agora que, em radical oposição à tese de que a
civilização romana é destruída pelas invasões ou migrações dos povos
germânicos, teremos os historiadores que defendem a ideia do declínio do
Império Romano. Opondo-se à frase de Piganiol de que o Império Romano foi
assassinado, um dos defensores da hipótese do declínio, propõe a frase de que o
Império Romano morreu de morte natural. Aqui, além da ideia do acontecimento
que produz o corte ou a ruptura definitiva, teremos a ideia do processo que
conduz à decrepitude de toda uma civilização. O acontecimento-ruptura é aqui,
ainda mais necessariamente, substituído pelo acontecimento-processo. De
qualquer forma, em um caso ou outro, ainda teremos a ideia de algo que termina,
e não de algo que se transforma. Na análise de Lot, as crises sociais, económicas
e políticas do século III teriam gerado uma nova resposta política assinalada
por um estado interventor, corrupto e burocratizado que substitui a antiga
autoridade senatorial. A esta crise, da qual o Império Romano jamais teria se
recuperado, também se somaria o novo tipo de organização militar onde os povos
germânicos incorporados ao Império desempenhariam um papel cada vez mais
destacado, por vezes à maneira de mercenários. Estes e outros processos são
mostrados como os sintomas de um declínio. O que é significativo, de qualquer
modo, é que também nesta leitura o Mundo Romano e o Mundo Medieval são
mostrados um tanto como planetas estanques: um começa onde o outro já se foi, e
são bastante minimizadas as interpenetrações entre estes dois mundos. Podemos
indagar sobre o que nos revela, acerca das concepções historiográficas que a
sustenta, a dicotomia que permeia a ideia de que o Império Romano morre como um
grande Ser, ora assassinado, ora definhando como um velho moribundo que ao
final de sua vida vê esvair-se gradualmente a sua energia vital enquanto se
desbotam os principais traços que lhe compunham a identidade. A ideia de um acontecimento-ruptura
que teria presidido a morte do Império através da violência dos povos
germânicos se adapta, por exemplo, a uma historiografia que tem importantes
desenvolvimentos no século XIX, e que anseia delimitar com precisão o acontecimento,
situando-o por vezes em uma data bem-definida, e de qualquer modo sempre
enfatizando o acontecimento político, político no sentido antigo, do macro poder
que se estabelece ao nível dos grandes estados, instituições e confrontos
militares. Ao mesmo tempo, na outra ponta da dicotomia, a ideia de queda ou de declínio
ampara-se em muitos casos, embora por um caminho distinto, nesta mesma velha
história política que se orienta tendo como perspectiva central a ser analisada
a capacidade de uma civilização manter ou não uma unidade imperial mais ampla.
Perder a unidade política, deste ponto de vista, é morrer, envelhecer, decair
em vigor. É aliás oportuno lembrar as considerações do historiador francês
Jacques Le Goff sobre as apropriações historiográficas do conceito de decadência,
um conceito que acrescenta um tom ainda mais depreciativo à ideia de declínio,
e que também pode eventualmente ser direccionado para questões meramente
políticas relacionáveis à desintegração da estrutura política.
Vale
lembrar que o conceito de decadência foi colocado também em pauta pelas
próprias gerações de pensadores que vivenciaram e se seguiram à desarticulação
do Império Romano em favor das novas unidades políticas e territoriais que
introduzem o período medieval. É assim que, em um célebre estudo sobre O fim do Mundo Antigo que é
também já um clássico, Santo Mazzarino (1916-1987) busca historiar precisamente
as trajectórias da ideia de decadência na produção literária e na cultura
latina como um todo, reinserindo-a no confronto ideológico entre cristianismo e
paganismo que eclode na época e se estende também por períodos posteriores. A
ideia de decadência, e essa é uma chave importante para a compreensão do uso do
conceito pelos próprios autores da época, implica sempre uma comparação do
período que se considera como decaído ou decadente em relação a um período anterior,
necessariamente visto como melhor. Assim, na ideia de decadência está sempre
explícita, de algum modo, uma exaltação ao passado. A consideração acerca de
qual seria o elemento que produz ou produziu a decadência, obviamente,
transmuta-se conforme a perspectiva do analista, que na época dificilmente
escaparia de um posicionamento em relação à questão da dicotomia entre
paganismo (ou humanismo clássico) e cristianismo». In José D’Assunção Barros, Papas,
Imperadores e Hereges na Idade Média, Editora Vozes, 2012, ISBN
978-853-264-454-1.
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