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De
profundis…
«(…)
Agora é o amplo terreiro da Senhora da Abadia que se me apresenta, imerso na densa
bruma de um longínquo passado de piqueniques, sob o copado dossel das tílias perfumadas.
Pantagruélicas merendas, com meia dúzia de comparsas, de que dois, saudosamente,
já se encontram do outro lado da vida... Talvez os seus espíritos andem pairando
por entre os ramos contorcidos destas árvores seculares, à espera de se evolarem
para sempre, quando a serra mecânica de uma autarquia assassina as venha a abater.
Espicaçado pela natural curiosidade, fui ver. O dia estava bonito. Algumas
nuvens vogavam no ar, como lenços brancos, a anunciarem tréguas de bom tempo, após
a caudalosa pluviosidade de ontem, teimando encher albufeiras vazias. Pisei
charcos de água, saltariquei pequenos regatos, mas cheguei, finalmente, à desolação
do Parque da Ponte, onde jazem, em desalinho de funeral selvagem, os melhores
exemplares de tílias da cidade, toda vestida de crepes naquele órgão vital do
seu corpo, já de si degradado pela incúria dos seus filhos espúrios.
Cada
árvore derrubada, um monumental escombro; cada tronco, um epitáfio votivo encimado
por uma cruz. E são oito esses epitáfios, oito gritos ecológicos no adro de morte
da capelinha do Profeta, que anunciou a vinda do Redentor do Mundo d’Aquele que
nos trouxe a Ressurreição e a Vida... Os epitáfios rezam: para que serve o dia da
Árvore? De pé dou saúde, no chão dou dinheiro. É isto justiça? Que mal fiz eu?
Venham ver a Natureza destruída! Vejam a maldade dos homens! Quem foi o autor do
crime?
Depois
de eu ter autopsiado, com minúcia cirúrgica, as características estradiváricas do
seu líber, e a compacidade, firmeza e brandura do seu lenho, que torna a madeira
das tílias óptima para o fabrico de instrumentos de música, vencilhos, esteiras,
celhas, formas e obras de torno, depeço-me das tílias tombadas, com a alma
torturada e os olhos rasos de água.
Fico-me
a pensar no meu velho, professor de Botânica, Gonçalo Sampaio, cujo busto de bronze
existia ali, ao lado, e no íntimo desgosto que lhe vai na alma. Subo a Avenida da Liberdade, devagarinho, cogitando na inconsciência
e injustiça dos homens, e nesta verdade, biologicamente insofismável: O cemitério
da árvore é a antecâmara da morte do Homem. Braga, 13 de Fevereiro de 1992.
Naquele
meu saudoso tempo de Tolentino, em que ensinava do alto da minha cadeira de pinho
bravo aos alunos irreverentes as provas da redondeza da Terra, contei-lhes muitas
vezes a memorável viagem de Fernão de Magalhães. Ao serviço do rei de Espanha, partiu
o sábio marinheiro de Sanlúcar de Barrameda em direcção ao Ocidente, encontrando,
exactamente, as mesmas ilhas das especiarias que os portugueses haviam descoberto
rumando em sentido contrário, ou seja, pelo Oriente. Viagem penosa foi essa, sulcando
tempestuosos mares, padecendo sede e forne, sofrendo avitaminoses pestilentas comendo
ratos e larvas, e até o próprio couro dos mastros... Desânimo, homicídio fratricida,
nostalgia da pátria distante, choques de etnias diferentes, emboscadas, candentes
distúrbios do sexo e outros tantos males que a oceanalidade arrasta consigo,
quantas e quantas vítimas ocasionaram nessa longa e árdua viagem que Fernão de Magalhães
levou a cabo até às Índias, embora aí ficasse, trespassado pelas setas envenenadas
dos indígenas. Gloriosa peregrinação oceânica, sem regresso!» In
Manuel O. Faria, Terra Inquieta, APPACDM, Braga, 1994, ISBN 972-8195-10-9.
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