domingo, 23 de abril de 2017

Terra Inquieta. Manuel Faria. «Subo a Avenida da Liberdade, devagarinho, cogitando na inconsciência e injustiça dos homens, e nesta verdade, biologicamente insofismável»

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De profundis…
«(…) Agora é o amplo terreiro da Senhora da Abadia que se me apresenta, imerso na densa bruma de um longínquo passado de piqueniques, sob o copado dossel das tílias perfumadas. Pantagruélicas merendas, com meia dúzia de comparsas, de que dois, saudosamente, já se encontram do outro lado da vida... Talvez os seus espíritos andem pairando por entre os ramos contorcidos destas árvores seculares, à espera de se evolarem para sempre, quando a serra mecânica de uma autarquia assassina as venha a abater. Espicaçado pela natural curiosidade, fui ver. O dia estava bonito. Algumas nuvens vogavam no ar, como lenços brancos, a anunciarem tréguas de bom tempo, após a caudalosa pluviosidade de ontem, teimando encher albufeiras vazias. Pisei charcos de água, saltariquei pequenos regatos, mas cheguei, finalmente, à desolação do Parque da Ponte, onde jazem, em desalinho de funeral selvagem, os melhores exemplares de tílias da cidade, toda vestida de crepes naquele órgão vital do seu corpo, já de si degradado pela incúria dos seus filhos espúrios.
Cada árvore derrubada, um monumental escombro; cada tronco, um epitáfio votivo encimado por uma cruz. E são oito esses epitáfios, oito gritos ecológicos no adro de morte da capelinha do Profeta, que anunciou a vinda do Redentor do Mundo d’Aquele que nos trouxe a Ressurreição e a Vida... Os epitáfios rezam: para que serve o dia da Árvore? De pé dou saúde, no chão dou dinheiro. É isto justiça? Que mal fiz eu? Venham ver a Natureza destruída! Vejam a maldade dos homens! Quem foi o autor do crime?
Depois de eu ter autopsiado, com minúcia cirúrgica, as características estradiváricas do seu líber, e a compacidade, firmeza e brandura do seu lenho, que torna a madeira das tílias óptima para o fabrico de instrumentos de música, vencilhos, esteiras, celhas, formas e obras de torno, depeço-me das tílias tombadas, com a alma torturada e os olhos rasos de água.
Fico-me a pensar no meu velho, professor de Botânica, Gonçalo Sampaio, cujo busto de bronze existia ali, ao lado, e no íntimo desgosto que lhe vai na alma. Subo a Avenida da Liberdade, devagarinho, cogitando na inconsciência e injustiça dos homens, e nesta verdade, biologicamente insofismável: O cemitério da árvore é a antecâmara da morte do Homem. Braga, 13 de Fevereiro de 1992.

Naquele meu saudoso tempo de Tolentino, em que ensinava do alto da minha cadeira de pinho bravo aos alunos irreverentes as provas da redondeza da Terra, contei-lhes muitas vezes a memorável viagem de Fernão de Magalhães. Ao serviço do rei de Espanha, partiu o sábio marinheiro de Sanlúcar de Barrameda em direcção ao Ocidente, encontrando, exactamente, as mesmas ilhas das especiarias que os portugueses haviam descoberto rumando em sentido contrário, ou seja, pelo Oriente. Viagem penosa foi essa, sulcando tempestuosos mares, padecendo sede e forne, sofrendo avitaminoses pestilentas comendo ratos e larvas, e até o próprio couro dos mastros... Desânimo, homicídio fratricida, nostalgia da pátria distante, choques de etnias diferentes, emboscadas, candentes distúrbios do sexo e outros tantos males que a oceanalidade arrasta consigo, quantas e quantas vítimas ocasionaram nessa longa e árdua viagem que Fernão de Magalhães levou a cabo até às Índias, embora aí ficasse, trespassado pelas setas envenenadas dos indígenas. Gloriosa peregrinação oceânica, sem regresso!» In Manuel O. Faria, Terra Inquieta, APPACDM, Braga, 1994, ISBN 972-8195-10-9.

Cortesia de APPACDM/JDACT