domingo, 16 de abril de 2017

Uma Mulher que não Abriu Mão do Poder. Isabel Stilwell. «Elvira esperou a explosão que se seguiria. A rainha devia ser a mãe, vociferou finalmente Teresa, enquanto atirava o pé da flor assassinada para o chão e a pisava»

jdact
Três Irmãs na Corte de Leão (1086-1094)
S. Pedro de Montes, Bierzo, Abril de 1086
«Teresa escondeu-se entre as rochas, fazendo sinal a Elvira para que estivesse calada como um rato. O imperador passou a galope, o leão da capa vermelha a rugir ao vento, deixando ver a cota dourada que só o rei podia usar. Seguia ladeado e protegido pelos seus homens, como convinha a quem viajava por estas veredas isoladas, onde os saqueadores ou seus inimigos poderiam armadilhá-lo com facilidade. O chão estava ainda gelado, Abril acabado de entrar, e Teresa reparou com alívio que os cavaleiros estavam demasiado concentrados em evitar que as montadas escorregassem, para reparar nos quatro olhos, brilhantes, que os observavam por entre a folhagem. Demasiado distraídos para darem pela paisagem daquele vale do Paraíso, a neve no topo dos montes, a erva de um verde renascido, tão vivo que encandeava os olhos, os carvalhos e os castanheiros em flor, a descerem em direcção ao rio.
Elvira subitamente espirrou. Uma vez, duas, três, as mãos a taparem a boca na urgência de abafar o barulho, que ecoava no silêncio absoluto, quase como uma avalanche. O jovem escudeiro que fechava a comitiva puxou as rédeas a fundo, e olhou em redor, desconfiado. Teresa reconheceu-o. Alberto, murmurou baixinho, incapaz de conter a surpresa, mas ele não deu por ela, ou fingiu não dar, e esporeando o cavalo lazão partiu de novo no encalço dos outros, que já se afastavam. Teresa saiu do esconderijo improvisado, furiosa com a irmã, que encolheu os ombros aflita, apontando para as mimosas em flor: sabes que perto delas espirro sempre, lamentou-se. Com 7 anos, Elvira era um ano mais velha do que Teresa, mas quem as conhecia, e para dizer a verdade mesmo quem as visse apenas uma vez, percebia que era Teresa quem dava as ordens, gizava os planos, construía as estratégias. Mandava, portanto.
Não sei como é que um dia queres combater os mouros se nem te consegues esconder de um grupo de homens armados, nas montanhas que conheces desde que nasceste, refilou. E pegando na espada que deixara escondida entre os fetos, ordenou: agora não há nada a fazer, vamos embora que a mãe vai ficar furiosa por não estarmos vestidas e prontas para descer. Elvira quis dizer que bem a tinha avisado de que o dia da chegada de Afonso VI não era o dia ideal para ensaiarem caminhadas nas serras, muito menos de espada na mão, mas não se atreveu. Argumentos que não tinham dissuadido Teresa da sua expedição, tão determinada como a mãe, que, contra todas as previsões de temporal, há menos de dois dias mandara as filhas, e a gente da casa, atravessar as montanhas ainda nevadas, no dificil caminho do castelo de Urvel até ao Mosteiro de S. Pedro de Montes, fundado e patrocinado pela família Moniz. Em tempos, havia sido ali que os ermitas tinham procurado a solidão, e agora Ximena buscara a protecção do abade Pedro. Mas talvez procurasse, acima de tudo, distância do lago de Carucedo...
Porque será que o imperador cá vem?, perguntou, ofegante Elvira, a pergunta que ninguém se atrevia a formular por palavras. Teresa estacou em silêncio, enquanto sacudiu o cabelo loiro, endireitando a touca que nunca estava muito tempo direita na cabeça, apesar do esforço da ama, que a compunha vinte vezes por dia, não, quarenta, ou mesmo cinquenta, ou todas aquelas em que se cruzava com ela...
Talvez o pai viesse buscar a mãe, talvez a rainha Constança tivesse morrido, talvez os levasse a todos para a corte. Mas não queria confessar a Elvira o seu sonho, e por isso encolheu os ombros e respondeu, mal-humorada: e achas que eu sei? E debruçando-se para apanhar uma margarida, começou a arrancar-lhe as pétalas, com fúria: bem me quer, mal me quer, muito, pouco ou nada. Irritava-a que a mãe fosse nada, ou quase nada, quando muito, pouco... Sabia que em tempos tinha sido muito, mas que importava isso se agora era outra mulher que se sentava no trono à direita do pai, a quem os nobres beijavam a mão, e o povo aclamava à sua passagem. Se era ela, a outra, que tinha dado à luz uma filha legítima. A única. A sua meia-irmã Urraca.
Elvira esperou a explosão que se seguiria. A rainha devia ser a mãe, vociferou finalmente Teresa, enquanto atirava o pé da flor assassinada para o chão e a pisava. Elvira esfregou os olhos inchados pelo pólen das flores que esvoaçava no ar, lavados agora pelas lágrimas: não comeces com essa história outra vez, implorou. Mas não tinha sorte nenhuma. Já sabia que não ia ter sorte nenhuma. Ultimamente, Teresa repetia e tornava a repetir a história de amor dos pais, ou de desamor, que uma das damas da mãe lhe contara às escondidas. Por maldade, dizia à ama. Por inveja, garantia a criada, que se lembrava bem do ciúme que os amores de Ximena e Afonso tinham provocado naquela pequena corte de província. Mas fosse porque fosse, a verdade é que tinha estilhaçado o coração da irmã, e quando o coração da irmã era estilhaçado, sobrava para toda a gente à sua volta». In Isabel Stilwell, D. Teresa, Uma Mulher que não Abriu Mão do Poder, Editorial Presença, Letras e Diálogos, Manuscrito, 2015, ISBN 978-989-881-802-7.

Cortesia de EPresença/LeDiálogos/Manuscrito/JDACT