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Calecute
«(…)
Muitas das embarcações de maior porte que se encontravam ao largo altearam as
velas e embalaram a favor do vento para mar largo. Pequenas barcas a remos
arranhavam nervosas as águas salgadas, esgueirando-se por entre corpos
inanimados e peixes empolgados pelo sangue, por entre os restos de cordame,
velas rasgadas, mercadorias naufragadas, alguns pendões bordados, restos de
madeira dos paraus e zambucos, as pequenas embarcações indianas. Havia mastros
e antenas a boiar com o lume ainda nas entranhas e uma quantidade enorme de
ratos que procuravam nadar até terra. Ao cheiro da pólvora, juntava-se o cheiro
do fogo: de madeira ardida e corpos abrasados. A carne destes porcos
malparidos empesta os ares!, gritavam os soldados. Só o cheiro das
especiarias que carregavam lhes animava de novo o olfacto e lhes despertava um
sorriso no meio daquele tormento. Pedro Álvares mandou que se aproximassem de
terra para ajustar a mira ao palácio do samorim e repetiu: fogo! Jesus
Belomonte, o seu fiel escudeiro, olhava-o incrédulo: de tão transfigurado, mal
o reconhecia. Altivo no seu porte, de rosto afogueado, faltava-lhe já a voz de
tanto gritar por entre as névoas de fumaça e o ar irrespirável da pólvora
queimada pelos canhões. Tinha atirado já com o elmo debruado de penas para a
coberta suja do navio e retirado a armadura do peito. O sol rompia, o calor e a
humidade sufocavam-no. Gotas de suor desabavam-lhe pela testa, pelo rosto,
ensopavam-lhe a barba farta. Um homem gritava ao longe, esbracejava, mas o
capitão-mor não o ouvia. Não ouvia ninguém. Não ouvia sequer a sua consciência.
Os seus olhos estavam raiados de sangue, cegos pelo mal da ira. Meu senhor,
interrompeu Belomonte tocando-lhe no braço. Meu senhor, perdoai-me, diz o
bombardeiro que os homens estão encegueirados, que não divisam terra. Que lhes
é impossível descortinar o palácio nesta correnteza de ventos fumados.
Cabral parou. Não disse uma palavra. Os homens ficaram suspensos dos seus
gestos enquanto escarravam para o chão e rangiam os dentes. Outros passavam as palmas
da mão pelas testas limpando a sudação quente e salgada. Uma das bombardas de
proa tinha mesmo rebentado causando a morte de um dos matalotes, um daqueles
tantos marinheiros sem qualificação que estava encarregue de limpar as bocas
dos canhões com o escovilhão comprido. As restantes peças de fogo ferviam pela
explosão da pólvora e o arremesso constante. Repousavam agora. Era o primeiro
minuto de silêncio naquela nau desde que se dera início à surriada contra os
árabes e hindus.
Por
fim. o capitão levantou a mão para suspender o troar dos canhões. O escudeiro
levantou a bandeira e fez sinal às restantes naus para que também suspendessem
o fogo. A mensagem foi passando entre as naus e os tiros aquietando. Belomonte,
ordena ao despenseiro que seja ligeiro na repartição de uma canacla (antiga
medida portuguesa igual a 1 litro e 4 decilitros) de água e biscoitos por todos
os homens. O jovem curvou a cabeça em consentimento e saiu para cumprir as
ordens. Os clérigos que se tinham recolhido assomavam agora nas vigias com as
contas do rosário entre os dedos. As águas agitadas faziam ondular a nau. Ouvia-se
por todo o lado o clamor sofrido de alguns homens. Uns queixavam-se dos
ouvidos, pelo estrondo das explosões, outros tossiam tentando libertar-se da
pólvora que lhes ressequira as gargantas. A água e os biscoitos souberam como
uma iguaria de nobres. O físico que cuide dos feridos, ordenou o
capitão-mor que permanecia firme no seu posto altaneiro». In João
Morgado, Vera Cruz, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-207-6.
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